Diálogos na fila do Juízo Final
por José Roberto Torero
 
Os ateus têm apenas uma grande certeza na vida: todos morreremos. Vem lá um dia, o coração pára, fechamos os olhos, escorre-nos uma baba e acaba-se tudo numa grande e eterna treva. Já os cristãos, talvez mais criativos, têm uma segunda grande certeza: todos passaremos pelo grande julgamento, o dito Juízo Final, quando Cristo dirá quem subirá aos céus e quem baixará às chamas dos infernos.

Segundo a Bíblia, o Senhor julgará todos os homens e lhes dará seu último destino. Mas parece-me que faltou ao Livro dos Livros especificar os procedimentos legais e burocráticos do Juízo Final. Como será feita a grande fila dos homens que serão julgados pelo Senhor? Por data de nascimento ou de falecimento? E outra, teremos algum rábula para ressaltar nossos atos bons e relativizar nossas maldades? Haverá um diabrete para fazer a função de promotor? E, se formos condenados, teremos direito a um caldeirão menos fervente se formos universitários?

Os ressuscitados devem ser algumas centenas de bilhões de pessoas, o que fará a fila dar várias voltas pelo globo e, como haverá uma mistura de gente de todas as épocas, poderemos ter encontros absurdos: Gandhi e Hitler, Platão e Nietzsche, Jece Valadão e Roberta Close, São Francisco e Átila, Madre Teresa e Júnior Baiano etc...

"O senhor quer me vender a sua senha?"

"Perdão?"

"Eu perguntei se o senhor quer me vender o seu lugar."

"E ir para o final da fila? Não, obrigado. Aliás, o que você ganharia com isso?"

"Depois eu poderia vendê-lo por um preço maior. As pessoas estão muito ansiosas por aqui. Muita gente quer resolver isso rápido e para isso vai precisar de um lugar mais à frente."

"E porque não vende o seu lugar."

"Minha especialidade é a intermediação. Não é muito lucrativo vender o que é nosso. Capitalismo, o senhor entende?"

"Como poucos, meu filho. Mas não é o meu sistema econômico favorito."

"E há outro? Até a Albânia virou capitalista. "

"..."

"Tome meu lenço. Por que o senhor está chorando?"

"Desculpe, que estou um tanto nervoso. Deve ser por causa dessa coisa de inferno. Isso me dá um pouco de medo."

"O senhor cometeu muitos pecados?"

"Fui um materialista".

"Eu também. Mas isso não é motivo para desespero."

"Engravidei minha empregada e pedi para um amigo assumir o problema. Ah..., o bom Friedrich..."

"Não chega a ser um pecado terrível. Talvez o senhor ainda escape do grande martírio. Já eu tenho certeza que vou para lá. Fui muito rico e Jesus disse que 'é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus.'"

"Mas eu tenho outro problema: falei contra a religião. Cheguei a pregar a descrença e o ateísmo."

"E ganhou algum dinheiro com isso?"

"Nada."

"Pô, então, você merece mesmo o inferno!"

"Talvez, talvez.... Se pelo menos a fila andasse mais rápido eu não ficava nesta angústia."

"Porque você não aproveita essa demora e faz a barba?"

"Já me acostumei. Era moda no meu tempo."

"O senhor tem que cuidar das aparências. Minha querida Ivana sempre dizia que as roupas são um testemunho do nosso interior. Aqueles vestidos dela custavam uma fortuna."

"De que adianta uma roupa melhor se daqui a pouco estarei ardendo em chamas?"

"Pelo menos não vai queimar vestido como um proletário."

"Ah!, os proletários do mundo... Você sabe se eles acabaram se unindo?"

"Vale torcida de futebol?"

"Não, acho que não..."

"Assim você vai encharcar o meu lenço."

"Desculpe. Sabe?, eu queria que eles não passassem mais fome."

"Deus!, isso me faz lembrar que não como há horas!"

"Eu daria minha obra autografada por um sanduíche."

"Isso me dá uma idéia. Ninguém está aproveitando esta imensa fila para fazer nada. Podíamos fazer uns sanduíches e ganhar uns trocados."

"Como assim?"

"Está vendo aquele estoque de maná. Um anjo me falou que está jogado ali há anos. Podíamos fazer um acordo com ele e depois vender o maná para o pessoal da fila. É o maior mercado da história!"

"Você é realmente um capitalista! Aquele monte de maná envelhecido se transformou em mercadoria diante de seus olhos!"

"Algum problema nisso?"

"Nessa altura dos acontecimentos, não faz muita diferença."

"Então, topa ser meu sócio?"

"Como assim, sócio?"

"Preciso de alguém para percorrer a fila comigo. Eu vou para um lado, você para o outro. São os últimos fregueses de todos os tempos, não podemos perder nenhum."

"Sei, sei."

"Você entende de economia?, sabe o que é capital?"

"Conheço o Capital como ninguém."

"E então?"

"Está bem, mas você suborna o anjo."

"Deixe comigo. Aliás, preciso saber o seu nome. Nossa firma tem que ter um bom nome para ajudar no boca a boca."

"Karl, Karl Marx. E o seu?"

"Trump, Donald Trump."

"Então seremos Karl & Trump?"

"Não. Precisamos de algo que lembre sanduíches."

"Que tal Marxdonald's?"

"Você é um gênio, Karl."

"Acho que vamos longe, Donald."