Luzia
desenho de Alex Sernambi / texto de Carlos Gerbase
 

Conheci Luzia quando ela tinha onze anos. Fui visitar Euclides, um amigo de infância que morava em Brasília há muito tempo, e ela nos acompanhou a um restaurante para um almoço rápido, espremido entre meus compromissos profissionais e os de Euclides. Era para ser uma conversa nostálgica, lembrando o campeonato de futebol que vencemos em nossa rua depois de comprar o juiz, vindo de outro bairro, mas devidamente "engavetado" pelo pai de Euclides. Luzia, contudo, transformou o almoço num inferno. Mal-educada, inconveniente, grosseira, parecia não ter entrado ainda na adolescência por absoluta falta de vontade.

Quando ela saiu da mesa para ir ao banheiro, Euclides pediu desculpas e justificou tudo pela morte da mãe, dois anos atrás, e pelo fato dele estar namorando de novo, o que deixava Luzia incontrolável. Quando ela voltou, mais antipática do que nunca, dizendo que o banheiro tinha cheiro de merda velha, tentei falar com ela sobre minha filha de nove anos, "quem sabe vocês não gostariam de se ver?" Luzia olhou para mim com profundo desprezo e disse "prefiro ficar sozinha a conversar com uma bostinha de nove anos". Pedimos a conta e fomos embora. Esqueci Luzia com a facilidade de quem esquece ter pisado em um cocô de cachorro.

Seis anos se passaram, sem qualquer notícia de Euclides e de sua filha insuportável, até que fui tomar um avião em São Paulo com destino a Amsterdã, onde participaria de um congresso sobre novas oportunidades de exportação para o Mercado Comum Europeu. Estava na fila do check-in quando Euclides chegou correndo, com um pacote pequeno na mão. Disse "graças a Deus, ainda consegui te pegar. O Rubens, lembra do Rubens?, me falou da tua viagem para a Holanda, e eu tenho que te pedir um favor: leva isso aqui pra Luzia, lembra da Luzia?, ela está em Amsterdã, é urgente. O endereço está escrito bem aqui". E me mostrou o pacote, que tinha um cartãozinho com um endereço colado com durex. Eu não podia recusar aquele favor para meu amigo Euclides. Afinal, a única medalha esportiva que ganhei na vida foi roubada pelo pai dele. Peguei o pacote, botei no bolso e disse que levava. O Euclides me abraçou, agradeceu e foi embora.

Depois de três dias em Amsterdã, participando do congresso mais tedioso da minha vida, finalmente tive uma manhã livre. Eu poderia ir ao museu Van Gogh, ou à casa onde nasceu Rembrandt, ou simplesmente passear no sol, que estava maravilhoso e parecia capaz de espantar o frio daquele fevereiro cheio de neve, mas lembrei da encomenda para a filha de Euclides. Peguei o pacotinho, conferi o endereço com o gerente do hotel e vi que ficava perto, dez ou onze quadras, que poderia percorrer a pé. No caminho, lembrei daquele jantar em Brasília, das barbaridades que Luzia dissera e fizera, da impressão de que ela se tornaria uma mulher fria, azeda, cada vez mais insuportável.

Toquei a campainha da porta verde, num prédio antigo de três andares, mal conservado, mas charmoso, e uma velha atendeu. Mostrei o cartãozinho e disse, com meu inglês macarrônico, "Luzia is here?" A velha apontou para a escada e disse "number four, room number four". Subi a escada. Era no último andar. Bati na porta, e uma garota linda, de cabelos vermelhos, mais alta do que eu, vestindo um robe de seda com motivos japoneses, apareceu na minha frente. Eu disse, "Luzia?" Ela sorriu e respondeu, "sou eu, entra". E disse que lembrava de mim, daquele jantar em Brasília, mas não lembrava meu nome. Eu disse que me chamava Moacyr Queiroz, enquanto ela abria o pacotinho. Seus olhos brilharam quando segurou uns trinta ou quarenta envelopinhos amarelos com rótulos vermelhos. Mostrou um deles para mim e disse, "você não sabe como isso é precioso aqui em Amsterdã".

Li o rótulo do pacotinho: "Colomy". Perguntei para que servia, ela riu e disse, "já mostro. Vem aqui." Segui Luzia até o quarto da frente, onde o sol entrava radioso pela janela. Mais da metade do aposento, que recendia a incenso de boa qualidade, estava ocupado por grandes vasos, onde vicejavam plantas bonitas, de folhas largas, mas sem qualquer flor. O mais interessante é que todas as paredes do quarto estavam pintadas com desenhos daquelas mesmas folhas, o que tornava o ambiente ao mesmo tempo exótico e acolhedor. Luzia deitou sobre um tatame, abriu um dos envelopinhos amarelos e destacou um papel pequeno e fino, aparentemente de seda. Depois, abriu uma lata e jogou sobre o tatame um montinho de terra, ou algo parecido. Só então, ao sentir o cheiro característico, percebi que ela estava fazendo um cigarro de maconha.

A partir daquele momento, fiquei nervoso. Não só tinha contrabandeado para a Holanda um produto brasileiro suspeito, que certamente me traria terríveis complicações se eu tivesse sido revistado na alfândega, como agora estava no apartamento de uma garota menor de idade prestes a drogar-se. Pior ainda: a garota estava semi-nua. O robe não escondia o corpo de Luzia, suas pernas longas e elegantes, o maravilhoso contorno de seus seios fartos, a curva aguda de seu ombro direito. Comecei a suar abundantemente, já que o sol, mais a calefação, mais o casaco grosso, mais o nervosismo, elevaram muito a minha temperatura.

Luzia, que, depois de esmagar aquela terrinha por algum tempo, agora a espalhava pelo papel fininho, perguntou se eu não queria tirar o casaco. Eu disse, acho que quase gritei, "não, estou bem assim". Se começasse a tirar a roupa, quando iria parar? Luzia acendeu o cigarro. Tragou. O cheiro da droga misturou-se ao do incenso. Então Luzia disse, "você não se importa se eu fumar do jeito que eu gosto? O sol é muito precioso nessa época." Eu disse que não, que não me importava. E ela imediatamente tirou o robe, ficando totalmente nua. Deitou de lado, olhou para mim e estendeu o cigarrinho.

Eu pensei em levantar e sair dali, abandonar aquele quarto cheio de plantas venenosas, descer aquelas escadas velhas, passar por aquela porta verde, correr até o aeroporto, pegar o primeiro avião de volta para o Brasil, para a minha família, minha mulher, minha filha, meu cachorro, meu escritório, meu grupo de Emaús, minha reputação de empresário sério, sem mácula, ficha limpa, cara limpa, nenhum contato com droga de nenhum tipo, nem álcool, nem nicotina, cafezinho só descafeinado. Pensei também que aquela era a filha menor de idade do meu amigo Euclides, que ele tinha feito uma sacanagem comigo me tranformando em contrabandista de papel brasileiro para cigarros de maconha no Mercado Comum Europeu, mas que isso não era motivo para que eu me transformasse num drogado e num devasso numa manhã de sol em Amsterdã. Pensei, pensei, pensei, estendi a mão e peguei o cigarro. Disse "obrigado" e deixei que aquela fumaça entrasse em minha boca, em meus pulmões e logo em minha mente.

Tirei o casaco, relaxei, olhei para o corpo de Luzia, sentei no chão, passei o cigarro de volta, observei o modo como ela tragava e segurava a fumaça por mais tempo, imitei-a, ela riu, disse que eu tinha que aproveitar o sol, o que considerei absolutamente normal, fui tirando a roupa, talvez ela tenha posto um disco, mas não tenho certeza, sei que deitei ao lado de Luzia e fumamos juntos por mais algum tempo, depois nos abraçamos, beijamos e fizemos amor por um tempo impossível de medir com exatidão, mas certamente prolongado, pela posterior vermelhidão do meu corpo. Foi, com certeza, um dos momentos mais felizes da minha vida. Muito mais feliz do que quando ganhei aquela medalha no campeonato de futebol da minha rua com a ajuda do juiz comprado pelo avô de Luzia.

Ela queria que eu fumasse outro cigarro, confeccionado com erva de outra espécie (ela era, aparentemente, uma grande especialista no assunto, além de produtora de médio porte), mas eu tinha que voltar para o hotel, onde, no começo da tarde, participaria da mesa-redonda "Mudanças cambiais e seus reflexos na política de preços de frutas não-cítricas". Vesti-me rapidamente e olhei para Luzia, ainda nua sobre o tatame. Ela sorriu para mim e pegou, de uma estante de madeira, um livrinho pequeno, de capa negra e folhas bem finas. Era uma Bíblia. "Papai me deu antes d'eu vir pra cá", contou Luzia. "Disse que, seu eu me sentisse solitária, deveria ler". E começou a ler: "Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho, e suave é a fragrância de teus perfumes; o teu nome é como um perfume derramado: por isso amam-te as jovens".

"O problema", continuou Luzia, "é que essas paginazinhas dão uma ótima seda pra fechar baseado. Todos os meus amigos adoram." E puxou uma das páginas, que desprendeu-se facilmente. "Eles só admitem trocar minha Bíblia brasileira pelos meus Colomys brasileiros, que acabaram mês passado. Resultado: já fumamos umas cinqüenta páginas, todo o Apocalipse, que não gosto, acho baixo astral." Sorriu para mim, mais iluminada que nunca, nem uma sombra da garota insuportável daquele almoço em Brasília. E concluiu: "Acho que você salvou o Gênesis."

Aquela visão nunca mais me saiu da memória. Cada vez que as adversidades da vida - os problemas familiares e profissionais, a alta da taxa de juros, a baixa nos preços das frutas não-cítricas - ameaçam minha tranqüilidade, penso naquela manhã de sol em Amsterdã e na Luzia lendo em voz alta sua pequena Bíblia semi-desfolhada.

Outro dia, encontrei o Euclides, e ele perguntou o que eu tinha achado de sua filha, que não via há tanto tempo. Eu disse que ela estava bem, saudável, que parecia entusiasmada com seu trabalho. Mas não disse que eu tinha salvo o Gênesis. Nem que nunca mais fumei baseado tão bom. Nem que eu tinha jogado fora aquela medalha horrível, que ganhamos juntos, com a ajuda do pai dele, o avô de Luzia, que Deus nos perdoe a todos, em sua infinita misericórdia. Amém.
 

 
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