Muito mais além...

por J. Olímpio

Nada podia ser mais incômodo para Lúcia do que aquela chuva gelada, em plena noite de quinta-feira. Já estava dez minutos atrasada para a reunião. Era sempre assim, quando tentava manter seus horários... Alguém, ou alguma estranha ‘força cósmica’, acabavam conspirando contra seu esforço sincero de não chegar tarde. Conformava-se interiormente com isso e, numa esquina alagada, um ônibus meio desgovernado quase desorganiza sua agenda por, no mínimo, uns dois séculos e meio...! Droga de cidade louca e desumana! Para completar o estrago, só faltava terem começado os trabalhos sem ela...

Apesar de um tanto formais, eles pareciam tê-la recebido bem, no grupo. Tirando-se uma ou outra reserva, o tradicional ciúme das mulheres casadas e o desconforto dos primeiros contatos, todos tinham se mostrado amistosos e até entusiasmados com sua presença no grupo. Afinal, não é todo dia que uma mulher jovem e com educação acima da média, sem grandes vícios, nada feia - e católica! - passa a freqüentar um grupo de estudos espíritas. E Lúcia, depois de um marido louco por dinheiro e um aborto traumatizantes, decidiu buscar seu lado não-material, sua suposta e mais que possível ligação com o plano espiritual. Desde a perda da mãe, uns dez anos atrás, nunca mais "teve" de ir à igreja aos domingos. Programa imperdível da espanhola enérgica que, mesmo casada com um brasileiro nada afeito a sermões e ladainhas, jamais tinha negligenciado sua missa. Inflexível como a Inquisição, arrastava sem dó Lúcia e seus dois irmãos para a Matriz da Imaculada Conceição; fizesse chuva ou caísse sol...

No grupo espírita, suas dúvidas eram sempre sinceras e deixavam os demais gratificados em poder esclarecê-las. As explicações vinham invariavelmente envolvidas por uma aura de misteriosa reverência, que Lúcia não assimilava direito. Às vezes, havia uma espécie de censura velada aos seus questionamentos recorrentes, como se a cobrança de mais lógica nos conceitos fosse um desrespeito à doutrina. Mas ela queria alcançar o que eles já sabiam e, por conseqüência, compartilhar daquela segurança no acreditar. Fazia três meses que freqüentava as reuniões.

Aquela noite, parecia haver certa tensão adicional no ambiente. Já tinham começado sem ela e as leituras de Kardec e ‘Chico’ Xavier tinham dado lugar à preparação para os contatos mediúnicos. Depois de uma oração, o dirigente assumiu ar solene e, como se quisesse atravessar o forro da casa com seu olhar embaciado, manteve o silêncio durante dois intermináveis minutos. Quando sua voz voltou a ser ouvida, não parecia saída daquele homem franzino, de pele pálida e ar cansado. Quem se dava a conhecer era alguém vigoroso, modulando frases curtas e bem marcadas por inconfundível sotaque italiano. Identificou-se como Domenico Sandroni, nobre veneziano do século XV e devasso declarado, cujos excessos carnais, muitos deles cometidos em companhia de "fogosas monjas contemplativas, amantes de práticas nada santificantes", haviam ocasionado sua purgação numa encarnação posterior; dessa vez na pele de um beduíno aprisionado e torturado por mercenários europeus, que terminou seus dias numa pestilenta cela da Legião Estrangeira, em 1897. A descrição detalhada das atrocidades cometidas contra Samir Al-Adhim (assim se identificou o espírito) causava arrepios e espasmos involuntários nos presentes, chegando ao máximo quando ele narrou sua lenta e dolorosíssima castração...

Lúcia estava perplexa e, ao mesmo tempo, muito consciente dos indisfarçados olhares de complacência que seus colegas lhe dirigiam, a cada novo lance daquela tragédia através dos séculos.

Foi quando o médium pareceu levar um choque e, com a voz repentinamente afeminada, revelou a derradeira identidade do ex-veneziano e ex-beduíno Sandroni/Al-Adhim; ninguém menos do que a catolicíssima Maria del Carmen Zamora (depois Louveira), isto é, a mãe de Lúcia! As frases seguintes do médium, agora maneiroso e severo como uma matriarca espanhola, foram a pura confissão de quem, "em nome de uma fé cega e equivocada", negara a existência dos espíritos e impusera aos filhos " um catolicismo fanático, cheio de culpa e de falsas visões de céu e inferno"; enfim, uma prova de que ainda faltava muito para aquele "espírito atormentado e sofredor" alcançar a luz...!

O horror de Lúcia só podia ser comparado ao de quem se descobre filho de um matador serial, condenado a pagar por seus crimes pelos séculos afora, transmitindo sua herança vergonhosa para seus descendentes. Sentia-se enxovalhada por todo tipo de abusos, perversões, violências e lascividades supostamente confessadas pelo espírito de sua mãe. Na sala mal-iluminada, oito pessoas e mais uma - Lúcia, aterrorizada! - continuaram a escutar o médium, em sua locução ‘contraltina’, agora dirigindo uma súplica dramática à já quase histérica filha de Maria del Carmen:

"_ ‘Hija’ querida, eu quero te pedir perdão... Por tantas vezes eu te forcei a seguir minha religião, minhas devoções...! Hoje, aqui no plano espiritual, sou muito grata porque posso te revelar a verdade sobre a nossa condição humana e espiritual, depois de desencarnados e conforme nossos merecimentos, nossa trajetória rumo à luz, através da purgação das faltas cometidas... Sei que muito mal eu fiz, desde minhas encarnações anteriores, e também sei que vivi iludida enquanto tua mãe... Por isso, muito me consola te ver aqui, aprendendo a verdade pela doutrina dos espíritos; pois ela te livrará dos meus erros e das ilusões que pratiquei... Só não posso negar o meu passado e, por ele, muito terei de passar, de sofrer, a fim de me purificar... Saiba que eu sempre estarei a teu lado, sendo teu escudo e tentando te apoiar na adversidade... (Aqui, o médium eleva a voz.) QUERO QUE SEJAS FIEL AOS ENSINAMENTOS AQUI PARTILHADOS, PARA QUE ENCONTRES A PAZ E A MISERICÓRDIA DO PAI! Agora tenho de ir-me, prossigo minha busca no rumo da luz...! Nunca esqueças que eu te amo."

Um instante de silêncio e o médium pareceu ser desinflado de uma presença interna. Rosto corado e expressão confusa, sorriu tímido para o grupo, sendo correspondido por todos... Todos...? Não...

Lúcia ainda estava estupefata e soluçava. Abraçava um abrigo inexistente, como estivesse nua e com muito frio. Percorreu as faces de cada um na sala e só encontrou resignação, nenhum conforto. Tremia. Teve vontade de gritar mas, entre lágrimas, só balbuciou:

"_ Por que isso, agora?... Será que não estou me esforçando o bastante? Ou, então, era necessário que eu recebesse uma revelação como essa, pra poder acreditar...?"

"_ Nós todos temos nossos karmas, minha cara, - recitou o dirigente-médium - ninguém está livre disso; afinal, somos ainda muito ignorantes e imperfeitos."

ooOOOOoo

A caminho de casa, Lúcia não conseguia deixar de ouvir, numa espécie de jogral lúgubre, as três "vozes" de sua mãe declarando ter praticado todas as taras, carpindo todas as dores e confessando todos os fanatismos que a condição humana suportaria. Entrou no apartamento ainda com aquele eco infeliz em sua mente, arrancou as roupas e atirou-se debaixo do chuveiro. Quase não dormiu, naquela noite. Lá pelas cinco da manhã, uma onda de suor febril se encarregou de espantá-la do sonho e da aflição que a perseguiam. Estava de bruços, o rosto enterrado no travesseiro; a camiseta erguida até as axilas, os seios intumescidos; a mão direita dentro da calcinha, a esquerda arrancando o lençol... Ao se virar, afogueada, fez um esforço tremendo para interromper a sequência dos toques, mas a situação já era sem volta... Um relâmpago mudo cruzou seu interior, inevitável e poderoso, trazendo de volta a memória de um prazer quase desacreditado há tempos. Um gemido longo, incontido, fez que ela confirmasse a realidade do momento, enquanto se contorcia no auge da sensação. Então o alívio, a volta da consciência e do fôlego...

A súbita percepção de que estava sozinha causou-lhe uma frustração bem real. Nunca (ou quase) costumava trazer os "sonhos de Eros" (como dizia) para o estado consciente. Aquilo era bem mais gratificante a dois... Três passos fora da cama, ainda meio tonta de tanta endorfina espalhada nas veias, e a figura da mãe se colocou em cena. Ah, se "Doña Carmita" pudesse vê-la agora...!?

Já nuazinha no meio do quarto, as mãos passeando pelo cabelos e pela pele ainda úmida, seu corpo inteiro exposto no espelho. Lúcia levaria uma bela bronca da pudica espanhola! Não sorria, mas sua expressão era serena. Passado o deslumbramento, surgiu uma relação inusitada entre a assustadora noite anterior e o despertar orgástico daquela manhã: o que uma coisa teria a ver com a outra?

Ninguém poderia negar, em sã consciência e longe de puritanismos, a ligação ao menos conceitual existente entre a plenitude sensorial - no prazer - e a maravilha da harmonia universal, ou seja, o que denominamos DEUS. No pequeno e temporário orgasmo, deveria estar codificado o mistério da Criação; com suas explosões de vida reproduzidas, em ponto menor, por toda a mobilização interativa que um orgasmo desencadeia. Cada micro-gota de adrenalina saturando a corrente sanguínea, cada um dos hormônios produzidos especialmente para o evento, os batimentos cardíacos acelerados, a respiração alterada, as contrações musculares e, por fim, a fantástica inundação, o fluxo radical, a enchente que também é vazante... Não seria tudo isso a reprodução do tão falado "Big Bang", da faísca inicial, da fração do NADA nos milhões de fragmentos do TUDO?...

E as criaturas...? Não estariam igualmente contidas nesse padrão harmônico, onde corpo e espírito nem sonham em subsistir separados? Onde a alma recusa terminantemente habitar um invólucro cujo "layout" não confere com sua embalagem física original? Será que ao cessarem essas vidas em seu ninho-planeta, poderiam ser degredadas em exílios etéreos, reavaliando atos que seus ex-corpos praticaram e recebendo "novas chances" de suas ex-mentes induzirem comportamentos espiritualmente (moralmente??) corretos, agora em novas edições corpóreas?... Como poderiam esses ‘espíritos desencarnados’ ter ciência de tudo o que se refere à carne, ao ainda serem e se saberem humanos? E quem lhes teria dado o direito de invadir as vidas dos que ainda vivem aqui, que sofrem e gozam de tudo o que há para se vivenciar, atropelando a sequência natural desse suposto aperfeiçoamento dos espíritos? Talvez o mesmo ‘deus’ que os puniria repetida e cruelmente, com deficiências e problemas ‘diretamente relacionados’ com as faltas cometidas em encarnações anteriores, tornando-os perseguidores humilhados de uma perfeição inalcansável e mostrando-se, em grandiloqüente estilo, um ‘deus’ impiedoso, eternamente descontente com suas criaturas imperfeitas e incapazes de alcançar redenção...! Pobre ‘deus’ frustrado, incompreendido e incorrigível em sua busca da criatura perfeita... Desgraçado esse ‘deus’, sem misericórdia para com seus próprios filhos; incapaz de preecher a condição primeira de quem se diz divino: AMAR...

 

 

 

 

 

 

FIM