O QUE É BARRIONUEVO? 

Giba Assis Brasil

 José Barrionuevo não é um analista político. Talvez o tenha sido quando escrevia no Correio do Povo, lá por 1992. No entanto, desde que foi contratado pela maior empresa de comunicação do Rio Grande do Sul, entrou num rápido processo de institucionalização para terminar se transformando no que é hoje: o administrador de uma grande central de mensagens da classe política do estado. Pois é exatamente isso o que representa a muitas vezes mal falada mas sempre lida página 10 da Zero Hora: o espaço por onde se comunicam as diferentes alianças, partidos, setores, facções, campos e líderes políticos gaúchos.

A própria diagramação da página confirma: com suas notas curtinhas no estilo consagrado pelo USA Today, e infelizmente cada vez mais presente no jornalismo brasileiro e mundial, a coluna mantida por Barrionuevo é um grande mural, onde são pendurados recados de procedência muitas vezes duvidosa, mas para destinatários quase sempre evidentes.

É fácil constatar que há predominância de uns sobre outros na utilização do nobre espaço, especialmente em períodos de disputa eleitoral. A parcialidade do comportamento da coluna durante as eleições de 1994, por exemplo, já foi tema de uma ótima monografia, redigida em 95 pela então bacharelanda em jornalismo Adriana Freitas Arend na Faculdade de Comunicação da UFRGS.

Mas é equivocado concluir que este desequilíbrio reflete apenas as posições pessoais do colunista. Como bom administrador, Barrionuevo em geral não emite opinião: apenas passa adiante as encomendas feitas pelos diferentes setores que se utilizam de seus serviços. Evidentemente, como muitas vezes há opiniões explícitas embutidas nos recados, elas terminam encontrando o seu destino. Mas, sendo os remetentes variados como as cores do mapa de poder do estado, as opiniões muitas vezes se contradizem, gerando o que uma leitura apressada identificaria como incoerência ou inconstância do colunista.

Uma coleção completa das Páginas 10 publicadas entre agosto e outubro deste ano, por exemplo, seria uma excelente radiografia dos movimentos em jogo durante a última campanha para o Governo do Estado. Mas aqui o assunto é um pouco mais específico. Vamos esquecer as intrigas inter e intrapartidárias (sempre presentes num espaço como este) e relevar a maneira como foram utilizados os números das pesquisas eleitorais (o que, por si só, já daria material para uma tese completa). Igualmente não vêm ao caso as previsões assinadas pelo colunista, nem todas acertadas, como a de que Neuza Canabarro seria uma das candidatas mais votadas à Assembléia (11/09). No caso, interessa apenas a forma como a página 10 tratou, durante a campanha, os programas de TV dos dois principais candidatos ao governo.

O HORÁRIO ELEITORAL NA PÁGINA 10

Por um lado, a coluna assinada por Barrionuevo trata desde o início de apresentar os programas do horário eleitoral gratuito como decisivos para a eleição: "Olívio Dutra", garante em 16/08, "não pretende inovar na sua campanha" e "vai apostar tudo no programa eleitoral de rádio e tevê, que entra no ar na terça-feira." Mas esta pretensão não daria certo, conforme antecipado em 17/08: "A propaganda eleitoral no rádio e na tevê a partir de amanhã não deve apresentar grandes novidades."

Em seguida (20/08), constata que a campanha começa morna de parte a parte, e aplaude: "Quando o candidato tem imagem sólida (ele fala de Britto) é como bolo: quanto mais se bate, mais cresce." Por fim, apela para argumentos científicos: "Os estrategistas políticos recomendam nestes casos que a oposição apresente um projeto alternativo mais consistente, que convença a opinião pública." Mas alguns dias depois (25/08) percebe que seu conselho não será levado a sério: "O PT pretende endurecer a linha de ataques a Britto em seus próximos programas de tevê. A idéia é buscar mais imagens da campanha de 1994."

A partir daí, a página 10 passa a emitir juízo de valor sobre os programas. Por um lado, um deles é tratado como obra artística em 18/08: "O primeiro programa do governador licenciado Antônio Britto será apresentado aos jornalistas às 17 h de amanhã. (...) É uma espécie de avant-première." E seus resultados são invariavelmente aplaudidos. A nota de 05/09 tem o título BRITTO GANHA NA TV, e diz o seguinte:

"A boa qualidade dos programas de propaganda eleitoral da Aliança Rio Grande Vencedor assegura a vantagem de Antônio Britto na fase decisiva da campanha eleitoral. Com mais tempo, o programa tem melhor ritmo no embalo de um jingle que é uma síntese da proposta do candidato à reeleição."

Em 06/09, a eleição já parece decidida na nota BRITTO DISPARA COM PROGRAMA NA TV:

"Os números do Ibope não deixam dúvida sobre a tendência do voto do eleitor a um mês da eleição. (...) De melhor qualidade e com mais tempo, os programas de rádio e televisão da aliança governista empurram o candidato para uma vitória com larga margem."

No outro extremo, os programas da Frente Popular nunca provocam qualquer efeito: "A campanha de Olívio não está conseguindo motivar a aguerrida militância petista." (28/08) "Nem mesmo os programas de propaganda eleitoral na TV chegam a provocar maior interesse." (02/09) "O PT pretendia aproveitar o dia 13 (número da sigla), domingo passado, para iniciar a reação. Não conseguiu." (15/09)

Mesmo quando a coluna admite que a Frente demonstrou "agilidade" por "veicular no sábado as imagens do comício de sexta-feira" (31/08), é só para concluir duas linhas adiante que o responsável pelo programa "não fez uma boa seleção de imagens." A nota NA GUILHOTINA (02/09) insiste nesse ponto: "Está a prêmio a cabeça de quem produziu as imagens do comício da FP e derrubou o programa da nominata proporcional."

Claro que os erros da Frente Popular e seu candidato não acontecem apenas na TV, mas é lá que eles se tornam públicos. A nota DESCUIDO (15/09) é esclarecedora a este respeito: "Os programas na TV da Frente Popular deixam transparecer um pouco o clima interno." No caso, trata-se de um erro de programação: "Ontem, segunda-feira, simplesmente foi reproduzido o programa de Olívio de sexta-feira, incluindo a convocação para os comícios e roteiros do fim de semana." Mas são apontados também equívocos de informação: "Diferentemente do que proclamou o PT, a Companhia Geral de Indústria está em pleno funcionamento, inclusive exportando seus fogões." (24/09)

Durante todo o primeiro turno, a Página 10 não faz uma única referência a qualquer erro, equívoco ou descuido de parte do programa de Britto. Um único, sutil, quase imperceptível reparo, em 45 dias de campanha: a nota SÉRIO (29/09) diz que "Britto somou pontos com o programa de ontem de propaganda na TV. Acertou o tom." O que, visto retrospectivamente, pode sugerir uma crítica velada a algum dos programas anteriores, que teriam "errado o tom" ou sido "menos sérios". Mas esta crítica, se existiu, não foi publicada.

Durante todo o primeiro turno, o único acerto do programa de Olívio (a "agilidade" em veicular o comício) esbarrou na "má seleção de imagens", que inclusive, segundo a coluna, quase provocou uma execução.

A comparação entre os programas revela a existência de dois mundos incompatíveis, o das denúncias e o das propostas, o dos desesperados e o dos vencedores: "Frente Popular intensifica as denúncias contra o governo Britto." (25/09) "Britto segue light, dando prioridade à apresentação das propostas de governo." (23/09) "A oposição queima todos os cartuchos nos dois últimos programas de rádio e tevê. É tudo ou nada." (27/09)

O encantamento da Página 10 com o comando da campanha de Britto na televisão chega ao seu auge no dia 03/10, véspera do primeiro turno. Ao comentar a performance de Britto no debate da RBS TV, a coluna assinada por José Barrionuevo informa que "o governador licenciado era acompanhado pelo coordenador de marketing de sua campanha, João Santana, da equipe de Duda Mendonça". E adianta que Santana está "cotado para tarefas importantes no futuro governo", já que "cuidará da imagem de Britto, que pretende se credenciar como candidato do PMDB à sucessão presidencial de 2002".

Seja quem for o autor, fosse qual fosse o destino, a verdade é que o recado não chegou. No dia seguinte, ao contrário do que previam as pesquisas e o colunista, os eleitores gaúchos decidiram que haveria segundo turno na eleição para governador. E a partir daí o tom das mensagens muda radicalmente.

A PÁGINA 10 E O SEGUNDO TURNO

Surpreendentemente para quem ainda acreditava na existência de um jornalista responsável pela Página 10, o primeiro comentário da coluna após o resultado da eleição é de que "Britto foi prejudicado pelo marketing equivocado da equipe de Duda Mendonça, que deve ter se inspirado no eleitorado paulista." (05/10) Onde teria ido parar o homem que, apenas dois dias antes, era "cotado para importantes tarefas no futuro governo"? A partir de agora, é bom se acostumar, ele é apenas um "visitante". Mas vai piorar.

A campanha adquire um novo tom em 06/10: "A concepção de marketing da campanha de Antônio Britto retoma o componente político, que escapa ao olhar apressado de visitantes. Ontem houve a primeira reunião da equipe de marketing, com a presença de representantes dos partidos, sob a batuta de José Otávio Germano."

O título da nota é sintomático: SEM PALMINHAS, provavelmente uma referência a alguns programas do primeiro turno em que Britto aparecia acompanhando com palmas o jingle da campanha. Interessante é que, exceto possíveis conversas privadas entre os autores do recado, o único espaço em que o governador tinha sido criticado por essa atitude, digamos, pouco séria, fora justamente o programa de TV da Frente Popular.

A troca de comando da campanha de Britto, que passa dos "profissionais de marketing" para os "políticos", é anunciada com insistência em 13/10: "A Aliança Rio Grande Vencedor retoma a partir de hoje a campanha com mais vigor. (...) Os programas de propaganda eleitoral serão temperados com fortes críticas ao PT, apontando as contradições do partido, deixando de lado a linha light adotada no primeiro turno, que se revelou equivocada."

Claro que as críticas da Aliança não serão como as da Frente Popular, tão comentadas no primeiro turno. As de Olívio eram sinal de desespero, "tudo ou nada". As de Britto "apontam as contradições" do partido adversário.

Enquanto isso, o programa de TV da Frente Popular continua errando: em 13/10, a coluna sugere que Olívio "deve procurar com urgência uma melhor assessoria para o setor primário" já que "os técnicos da Emater simpatizantes do PT ficaram horrorizados com algumas promessas na tevê." Em 16/10, avisa que a estratégia petista de "atacar os líderes governistas" e "substituir o debate sério pelo deboche" na verdade conseguiu "incendiar a militância do PMDB ao atacar o Simon" e "sacudir a estrutura do PPB ao atacar Celso Bernardi". Mais um tiro do PT que sai pela culatra.

Mas agora há uma novidade. É preciso explicar de alguma forma como uma campanha tão errada pode ter conseguido superar as "melhores propostas" da aliança governista, levando a eleição ao segundo turno. Mais uma vez, o segredo está no programa de TV. A equipe responsável pelo programa de Olívio - a mesma que, alguns dias atrás, não conseguia "motivar a aguerrida militância", não tinha capacidade para fazer uma "boa seleção de imagens", e que chegou a estar com a "cabeça a prêmio" - agora "faz escola em matéria de marketing político" (16/10). Dia 20/10, a coluna garante inclusive que "a equipe de marketing de Olívio chegou a sugerir que o candidato aparasse o bigode", mas que, "diante da resistência, decidiu, inteligentemente, explorar o bigode como marca do candidato."

Já o programa de Britto - aquele mesmo que tinha "melhor qualidade", "melhor ritmo" e um jingle que era "uma síntese da proposta do candidato", e que por isso mesmo estava conduzindo o governador, com sua "imagem sólida", a "uma vitória com larga margem" - agora é "comprovadamente equivocado": "O Ibope revela que o marketing do primeiro turno ampliou a rejeição a Britto." (15/10) Ou seja: a rejeição a Britto aumentou - "o Ibope revela" - não porque a população tenha aceitado as "denúncias" da Frente Popular de que o governador vendeu estatais que prometera não vender, ou porque acreditou que ele era responsável pelo desemprego ou pela crise na agricultura, não porque tenha sido apresentada alguma "proposta alternativa", mas simplesmente porque "o marketing estava equivocado".

O editor-assistente do Não Alvaro Magalhães sugere que "em futebol, isso se chama comentarista de resultados". Mas a minha tese é que, no caso, não há um comentarista.

Durante o segundo turno, o acompanhamento da Página 10 ao programa de Britto segue duas frentes. De um lado, registra as melhoras alcançadas após a "intervenção" dos políticos: "Melhorou: programa de TV da aliança ganhou sotaque gaúcho ontem à noite." (16/10) "Pronunciamento de Antônio Britto, ontem à noite na TV, foi, seguramente, sua mais forte manifestação nos programas de propaganda eleitoral desde o início da campanha eleitoral. O texto é do próprio candidato." (22/10)

Paralelamente a isso, os responsáveis pelo programa no primeiro turno são progressivamente desqualificados. Duda Mendonça é ironicamente referido como "gênio" em 16/10, quando a coluna contabiliza as derrotas de sua agência em todo o país. Em 21/10 ele é um dos "chamados gênios" que estão sendo "colocados por terra" com a eleição. Mas, até aqui, o recado ainda é facilmente inteligível: trata-se apenas de isentar o governador e sua equipe da responsabilidade por uma possível e cada vez mais provável derrota. Como de fato.

A partir do resultado final da eleição, com a vitória de Olívio Dutra em 25/10, a explicação oficial segue na mesma linha: "A imagem de Britto melhorou na reta final. Mas já era tarde para recuperar os estragos provocados no primeiro turno." (27/10)

E Duda Mendonça continua no seu calvário particular pela Página 10. Em 27/10, é um "colecionador de fracassos". Em 28/10 é o "marqueteiro preferido" de seus adversários. Em 30/10 é o "pequeno duende fabricante de fantoches" que deveria "procurar uma vaga na produção do programa do Ratinho". Ao citar uma entrevista do publicitário ao jornal O Globo (28/10), a coluna questiona se Duda seria "gênio ou idiota?"

Quanto ao homem de confiança de Duda, responsável pelo programa de TV de Britto e "cotado para tarefas importantes no futuro governo", seu nome só volta a ser citado uma vez, em 27/10, aparentemente como possível doador de órgãos: "Por aqui, tem gente querendo o fígado do João Santana."

A essa altura, é como se todos os autores de recados da Página 10 se alternassem na catártica atividade de jogar pedra na Geni, quem sabe numa tentativa de manter a aliança governista, ainda que na oposição, pelos próximos anos.

Mas talvez ainda seja mais do que isso. Ao discutir o possível lucro da agência de Duda Mendonça com as campanhas de 12 candidatos a governador em todo o país, estimado ora em R$ 6 milhões (27/10), ora em R$ 70 milhões (30/10), ao sugerir que "a consciência parece ter-lhe sido amputada há tempo" e ao reproduzir a piada segundo a qual "se ele conseguisse eleger o Maluf, tava rico" (30/10), a Página 10 parece estar indo além. Ainda que a interpretação seja subjetiva, o que eu vejo aqui é bem claro: um grupo de endividados usando a sua central de comunicações para reclamar do serviço e tentar renegociar o custo.

Do ponto de vista do leitor/eleitor, que não está atrás de mensagens cifradas, mas de informação jornalística, o que fica é uma triste lição. A eleição não foi decidida nas urnas, e sim na TV. Olívio ganhou não porque conseguiu apresentar "um projeto alternativo mais consistente", que tenha "convencido a opinião pública", conforme recomendavam "os estrategistas políticos" no início da campanha. Olívio ganhou, diz a página 10, porque sua "equipe de marqueteiros" deu "verdadeiras aulas aos magos do marketing". (27/10) Democracia é pura ilusão.

Seria um ponto de vista respeitável, se fosse minimamente coerente. Mas, segundo a Página 10, a realidade também pode obedecer a outras leis. Em Brasília, por exemplo, onde o candidato de Duda Mendonça ganhou a eleição, tudo é diferente:

"Os assessores do governador eleito Joaquim Roriz foram unânimes em afirmar que a vitória do candidato se deve mais ao seu estilo próprio do que à superprodução de marketing que importou da sede da empresa de Duda Mendonça, em São Paulo, para o Distrito Federal." (27/10)

Confuso? Pois é. Quem mandou exigir coerência de uma central de recados?
 

Giba Assis Brasil
20/11/1998
publicado originalmente no Não 59
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