Em nome do pai

João

Estávamos ali, no dia primeiro de abril de 1964. Um dia cinzento, frio e invernoso de outono. Era domingo. Dia de decidir a Segunda Divisão. O vencedor seria promovido e na temporada seguinte estaria entre os grandes. Garantia de estádio lotado, transmissão pelas rádios da capital, vitrine para os jogadores, todas essas coisas. Eu corria muito, defendia bem, armava no centro e tabelava na frente. Tinha deficiências: não sabia chutar a gol e cabeceava a bola para todos os lados, menos para onde eu queria.

Nesse dia eu estava no banco. O treinador queria a equipe ofensiva. Precisávamos vencer. O Lajeadense jogava pelo empate. Dentro da sua própria casa. O futuro de todos se desenhava com a ponta das chuteiras. Nosso treinador era áspero: gritava muito, gesticulava muito, exigia muito do time o tempo todo. Pedi para comecar o jogo. Ele não deixou. Pedi para entrar no intervalo. Ele não deixou.

Existem dias tão estranhos que escorrem pelo calendário. Os ponteiros voam como aquelas aves que atravessam o oceano fugindo do inverno. Eu estava ansioso para entrar em campo e lutar como um pássaro ferido em pleno vôo. O inverno estava chegando, triste, pesado e grávido de nuvens horrorosas. Eu não estava preparado. Quem estava?

Trinta e um minutos do segundo tempo: o Estrela perde por 2 a 0. O treinador enlouquecido, encharcado de suor, faces vermelhas e voz diminuindo. Me chama. Passa as últimas instruções que eu não escuto. Não vejo a torcida nem os meus companheiros. Entro correndo em direção a bandeira de escanteio. Como um maestro míope que rege sua orquestra com os olhos fechados. Como quem beija. Escanteio cobrado. Corro pro fundo do gol buscar a bola. Corremos todos. Sem abraços. Sem comemorações. O treinador abre os braços em direcão ao céu. Pede que joguemos com o coração. Como quem beija.

40 minutos do segundo tempo: 2 a 1 para o Lajeadense. Zagueiro vencido, goleiro no chão e a bola explode contra nossa trave. No rebote dou um balão rumo a lugar nenhum. As asas da bola levam-na para o ataque. Ali está o pequeno Oliveira, nosso centroavante. Meias arregaçadas, sorriso menino com os poucos dentes que a vida ainda não roubou. Rindo, vai vencendo o destino, driblando os adversários e os buracos do campo. A bola passa por entre as pernas do goleiro e morre mansinha no fundo do gol. Empate. Estádio subitamente emudecido. Treinador com as duas mãos no peito. É primeiro de abril e as nuvens encobrem o céu.

44 minutos. Estamos cansados. Eles trocam passes e deixam o tempo escorrer por entre as costuras da bola. Eu me entrego. Como quem beija. A bola vem se aconchegar nos meus pés, amada, e vamos juntos como dois enamorados, de mãos dadas, driblando os golpes e as imperfeições do gramado. Sou derrubado na meia-lua. Rolo no chão para amortecer o golpe. Grito de dor para amenizar o golpe. Uivo para que meu corpo inteiro assimile o golpe.

45 minutos. Ajeito a bola para que a parte mais dura receba o calor do meu pé esquerdo. Respiro fundo, o corpo sereno como na hora depois do amor, quando nosso coração palpita no peito da mulher amada. A bola geme e se rende, como quem morre, para ressuscitar no fundo do gol. Silêncio. Apito final. Vencemos. Nos abraçamos e choramos como crianças diante de um brinquedo novo recém-quebrado. A torcida esta de pé e aplaude: epifania.

Corro a sua procura para o abraço final. Encontro seu rosto molhado de suor no interior de uma viatura da polícia. Era primeiro de abril e o treinador estava sendo preso e nunca mais nos veríamos e ele não era comunista e durante todos esses anos esperei você de volta para o único abraço que faltou naquela tarde, pai.