Tempos modernos
por ClaraH Averbuck

O pai está perplexo. Ele caminha pela sala, enquanto a mãe assiste a novela. Finalmente, ela diz:

- Luís, ela não teria por que mentir. Se diz que passa as noites jogando RPG com os amigos, eu acredito.

- Não Cristina. Não seja ingênua. Use a cabeça pra algo mais útil que receita de bolo! Ela sai com aqueles elementos estranhos, e volta de madrugada, exausta!

- Ora, é implicância sua.

- Claro. Eu sou um antiquado. Conservador, não é mesmo? Que bobagem. Não preciso me preocupar com as companhias da minha filha, afinal de contas.

- Pois eu acho os rapazes muito simpáticos, e não acho que sejam má companhia. Você está ficando velho, Luís. Velho e paranóico. Sai da frente da minha novela.

- Mas você viu aquele que só usa preto? Como é o nome dele? Você viu o tamanho da unha do dedinho dele?

- Não, Luís! Eu não fico reparando nas unhas dos amigos da Cláudia, por Cristo! Aquele é o Marcos.

- Mas, Cristina, não é por reparar, a unha dele é descomunal! Parece um cobrador de ônibus intermunicipal!

- Vai ver ele toca algum instrumento, ora.

- Sim. Claro. Aquele pode tocar berimbau com a unha. Deve tirar sons inovadores. E aquele outro que anda de muleta?

- Não é muleta, Luís! Mas que coisa! É uma bengala!

- Bengala? Pra quê, ele é reumático?

- Não sei, Luís. Pára de interromper a novela.

Nisso entra Cláudia, dá um beijo no pai e diz:

- Pai, será que nós podemos jogar aqui em casa hoje?

- Jogar o qu... Aqui? Dentro???

- Claro, pai. No corredor não dá, né?

- Mas... Eu... Ahn...

- Ótimo, filha. Assim seu pai pára com essa implicância boba.

Cláudia sai, contentinha, a mãe aumenta o volume da TV, e o pai fica olhando pra parede branca. De noite, enquanto estão todos reunidos na mesa, jogando, o pai observa, estupefato, e comenta:

- Eu não acredito que a nossa filha se chama Irajá e é dono de um bordel. Irajá, Cristina! E o tal da unha? Se chama Charlene é acrobata! Não pode. Não acredito que eles passam a noite jogando SBT.

- RPG, Luís. Eu não disse que era implicância?

- Mas eu não acredito. É só a gente se descuidar que eles vão fazer alguma coisa. Lembra na nossa época? Era só o pai se descuidar que a gente... Bem, ainda tinha cinema, lanchonete, baile... Hoje em dia só se faz isso? Que geração, essa....


- Luís, precisamos conversar.

- Ahn? O que houve?

- O Juninho está de namorada.

- Ah, que bom. Esses meninos de hoje começam cedo. É uma coleguinha da escola?

- Não. Ela é holandesa. Eles se conheceram pela internet.

- Uma holande... Da Holanda? Lá longe?

- Ele disse que está perdidamente apaixonado e quer largar os estudos prá encarar um relacionamento sério.

- Mas ele está na sétima série! Não consegue nem fazer miojo! Quer fazer o que, esse desajuizado?

- Bom, ele falou em intercâmbio. Talvez na casa da família da Inga... Ela parece uma boa moça. Além do mais, eles criam vacas, e...

- INGA??? VACAS??? O meu filho vai virar ordenhador???

- Ora, querido. Você sabe como são as crianças. Ele está iludido, acha que encontrou sua outra metade.

- Não, não, não. Espere um pouco. E se essa tal Inga for um alemão gordo e peludo? Um transformista pedófilo? Como ele sabe que é A Inga???

- Ele tem uma foto dela ao lado do pai e de uma vaca premiada. Ela é meio cheinha, mas é bonita. Para uma holandesa.

- Eu vou falar com esse menino agora. O que ele está achando???


- Luís...

- Cristina, ele não me ouviu. Nenhuma palavra. Tentei dizer que a Holanda é longe, cheia de holandeses, e que Inga é nome de garçonete de estrada. Mas ele não quis saber. E ainda disse que estou ficando velho e não entendo o amor deles. Na minha época se respeitava os mais velhos!

- Mas o que ele disse?

- Que está apaixonado. Que eles têm uma conexão muito forte. Assistem os mesmos desenhos. O mesmo show noturno. Adoram Hanson. Ai, minha cabeça.

- Sabe o que eu acho? Que seria bom pro menino viajar, arejar a cabeça, sabe, querido?

- Arejar??? Mas é só isso que ele tem na cabeça! Ar! Vento! E certamente ele herdou isso de você! Quer que eu venda a geladeira prá mandar ele pro meio das vacas???

- Ah, Luís. É impossível falar com você. Meu pai quer pagar a viagem. Afinal, ele conheceu a Lina no “Almas Gêmeas” do Zaz e está entusiasmado com esse negócio de internet. E eu acho que...

- Sim! Eu sabia. O seu pai. Ele é um deles. É tudo uma conspiração contra minha sanidade. Confesse.

- Luís...

- É. Eu sei. Eu estou velho. Ultrapassado, não é? Tudo bem. O Júnior pode ir. Azar da Inga e suas vacas. Quem se importa? Eu não. Hunfz.

- Se acalme, meu bem. Que bom que você entendeu. Então...

Mas ele não ouviu. Se dirigia prá porta da casa, com uma garrafa de Jack Daniels. Foi visto pela última vez no Bar do Beto, falando sozinho.

ClaraH Averbuck