"Cuidado com os idos de maaaaaaaaaaaar..."

 

Paulo Betti

 

O Paulo José estava lá e me contou. Foi logo depois do golpe militar (1965 ou 66). A empresária Ruth Escobar resolveu encenar a tradução de Carlos Lacerda – governador do Estado da Guanabara – da peça Júlio César, de Shakespeare. Lacerda era odiado por muitos, principalmente pelos artistas e pelo pessoal da classe teatral, que se opunham ao governo recém instalado pelo golpe. O "corvo" foi um dos principais conspiradores do regime e precisava de uma garibada na sua imagem, do verniz que o posto de tradutor de uma obra tão importante poderia lhe dar.

Ruth Escobar, espertíssima, arma a produção e, é claro, consegue muito dinheiro oficial. Contrata um elenco excepcional, regiamente pago: Juca de Oliveira, Aracy Balabaniam, Glória Menezes, Raul Cortez, Sadi Cabral, Jardel Filho, Renato Consorte, e um dos melhores diretores da época, Antunes Filho, já então no auge de sua carreira. O cenógrafo Wladimir de Carvalho (que mais tarde faria o antológico cenário de O Balcão, talvez um dos mais ousados cenários teatrais de todos os tempos) desenha uma imensa escadaria que leva a um grande pórtico, para que ali se desenrole a tragédia de César. Os figurinos são de Maria Bonomi, expressiva artista plástica, então com pouca experiência teatral.

Antunes, talvez movido por uma espécie de auto-punição por estar fazendo uma produção tão politicamente incorreta, tão odiada por seus pares - que ainda reclamavam do desvio de toda verba da Secretaria de Cultura para uma só produção - emprega uma estratégia suicida para dirigir o espetáculo: ensaia o elenco separadamente, utilizando uma planta baixa do cenário. O elenco completo só se encontra no ensaio geral, na véspera da estréia. Não sabem quanto tempo dura a peça e descobrem que transferir as marcações para escadaria não é nada fácil.

O ensaio geral dura nove horas. A estréia no dia seguinte parece impossível. Os atores argumentam que não sabem como fazer as transições, que não conhecem o cenário nem os figurinos. São demovidos da idéia do adiamento pela produção do espetáculo: toda a divulgação já está feita e as autoridades interessadas - políticos, empresários, militares – confirmaram presença. O pano tem que abrir. Antunes lembra que a tradição prevê uma boa estréia após um mau ensaio. Invoca a teoria de Artaud: "Teatro é o risco da catástrofe iminente". O brilhante diretor convence o elenco que a estréia deve sair. Acredita-se no milagre. (Logo depois acreditaríamos em outro milagre, o econômico).

Noite de sábado, Teatro Municipal de São Paulo completamente lotado. Nos camarotes, os patrocinadores, os generais do primeiro e segundo exército, os governadores Carvalho Pinto e Carlos Lacerda e dezenas de políticos. Na platéia e nas frisas, o pessoal da "classe", torcendo para que tudo dê errado.

Tudo dá errado. Logo no começo, Juca de Oliveira aparece no alto da escadaria, abre os braços e diz:

- " Que se abram de par em par os portais de Ro..."

Não chega a dizer "...ma". Ao abrir os braços, a alça de couro que sustenta o escudo se rompe e ele rola escadaria abaixo, reverberando sua natureza de lata a cada degrau. O escudo roda até a boca do palco, perde velocidade e cai, ainda rodando e reverberando, como só as tampas de lata sabem fazer, até que finalmente pára. A platéia, até então tensa, explode num estrondo de palmas debochadas.

Raul Cortez, aparece no alto da escadaria vestindo uma saia curta, branca, plissada. Antes que fale qualquer coisa, o diretor italiano anarquista Alberto Daversa, grita de uma frisa: "Maria Esther Bueno!". A platéia vem abaixo em gargalhadas. Mas a peça continua.

Morto, Júlio César (Sadi Cabral) é trazido ao palco numa espécie de carroça romanizada pela cenografia. Estava nu, apenas coberto por seu manto. (O diretor justificava a nudez de César como símbolo da solidão na morte, ou qualquer coisa assim). Sadi percebe que a carroça posiciona-se erradamente mas nada pode fazer, já que está morto. Quando Marco Antonio retira o manto e o descobre, César está com a bunda virada para a platéia. Alberto Daversa grita outra vez: -" Popô arte! Popô arte!". Outra gargalhada. Sadi Cabral passa a longa cena que se segue imóvel, nu, com a bunda virada para o Teatro Municipal lotado.

Intervalo. As autoridades vão embora e deixam a peça entregue a sanha da classe teatral. Agora a curtição é saber até onde vai o espetáculo. Os erros decorrentes da falta de ensaio em conjunto se sucedem. De quando em quando ouve-se os gritos de Antunes Filho, vindos do fundo do teatro: -"Segue! Segue!".

Sadi Cabral aparece novamente, agora como o fantasma de César, numa passarela no alto do pórtico: "Lembrem-se dos idos de março! Não se esqueçam dos idos de março..." Sadi vai recuando e não percebe que a passarela acabou. Agarra-se num pano lateral e despenca de grande altura. O último "maaaaaaaaar..." é seguido de um estrondo no fundo do palco. Depois de um "ooohhhh!" coletivo, a platéia silencia, preocupada. O diretor grita da coxia, estimulando: -" não pára, segue!" Ouvem-se sirenes de ambulâncias, mas o espetáculo continua até o final. O pano se fecha e a platéia aplaude de pé, rindo do fracasso maior que o desejado. O elenco ofendido não volta para agradecer.

Antes de ser definitivamente sepultada a montagem teve ainda mais uma apresentação, no domingo. Sadi, que sofreu uma fratura na bacia na queda, teve que ser substituído. O substituto não conhecia a peça nem teve tempo para decorar as falas. Decide-se que lerá o texto num pergaminho. Pouco antes de começar a sessão, o substituto revela que é completamente míope. Deve ter sido a primeira vez que Julio César foi representado de óculos.

 

Nota do Editor: O Paulo José garante que o substituto também caiu do alto do pórtico na sessão de domingo, mas eu acho que isso ele está inventando.

 

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