Zero Hora e os empregos da Ford
por Jorge Furtado
 

No dia 9 de maio Zero Hora publicou (contra capa do caderno de economia) uma entrevista com o professor José Ricardo Tauile. A reportagem de Lúcia Ritzel o apresentou como economista e engenheiro, professor do Instituto de Economia da UFRJ, pesquisador há 15 anos dos movimentos das montadoras no Brasil, doutor pela New School de Nova York e pesquisador do CNPQ. O título:

A matéria toda destoava, pelo apartidarismo e objetividade, do bombardeio de interesses políticos e empresariais que caracterizaram a cobertura de ZH ao tema. Um raro momento de jornalismo. Alguns trechos das respostas de Tauile: (Você sabia que a Bahia, tão ávida da Ford, perdeu montadoras coreanas? E que a Ford desistiu de implantar uma fábrica na Argentina no final de abril? Nem eu.) (sobre a saída da Ford do RS) A entrevista é toda interessante e segue neste tom, desmontando velhos argumentos e apresentando dados novos. Até que surge a seguinte pergunta: Achei a resposta muito estranha. O cálculo de Tauile confirma os tais estudos, que ele mesmo diz serem "um delírio". A Ford iria criar 1.500 empregos diretos. 1.500 x 50 = 75.000.

Não fui o único a estranhar. Zero Hora publicou na página 2 no dia 17, sob o título "Montadora", uma carta alertando para o estranho raciocínio de Tauile:

José Wilmar Govinatzki, engenheiro, Porto Alegre.

Foi difícil achar o e-mail do prof. Tauile. Revirei o Altavista e o Cadê, sem sucesso. O jeito foi mandar um recado para os seus colegas do instituto de economia da UFRJ. Um deles me respondeu no dia seguinte. Escrevi ao professor. Ele me respondeu hoje (21/5). E autorizou a publicação aqui no Não. Aí vai:
 



 
Empregos Indiretos
por José Ricardo Tauile
 
 
Minha recente entrevista ("Projeto da Ford é obscuro", em 9/5/99) contém em si um ponto obscuro, corretamente anotado por leitores. Não credito este fato a erro da Zero Hora e sim a uma espécie de ruído na comunicação coloquial durante a entrevista. Vou tentar deixar claro o meu ponto.

Pensar que o projeto de instalação de uma fábrica da Ford em Guaíba, que prevê a geração de 1500 empregos diretos possa gerar 100.000 empregos indiretos, como disse na entrevista, é um delírio. Mesmo se esta estimativa fosse de 60.000 empregos ainda considero um exagero. A partir daí ainda caberia perguntar - aliás o que considero mais importante para o RS - quantos e quais empregos na cadeia produtiva desta fábrica seriam gerados no Estado, fora do Estado mas ainda no Brasil e, finalmente, fora do País.

A resposta precisa a estas indagações só pode ser dada conhecendo-se a estratégia de produção da montadora. Qual será o grau de subcontratação utilizado? Utilizará ela uma estratégia de global sourcing, trazendo componentes de qualquer parte do mundo, onde suas condições de fabricação forem mais convenientes? Ou será que utilizará o just-in-time, que implica a necessidade de ter os fornecedores de primeira linha instalados junto à montadora? Ou qual combinação das duas estratégias utilizará?

O estudo de Najberg e Vieira, publicado na revista PPE do IPEA de abril de 1997, utilizando a matriz insumo/produto brasileira confirmou que, em relação ao estímulo para o conjunto das indústrias, o setor automóveis/caminhões/ônibus foi classificado com alto poder de expansão da produção agregada. Não obstante, em relação à geração de empregos, constatou que tal setor gera uma baixa demanda por empregos (ficou em 36° entre 41 setores analisados).

Tentemos precisar mais concretamente esta avaliação para o caso em tela. Segundo dados da ANFAVEA e do SINDIPEÇAS ao longo da década de 80 a proporção entre os empregos gerados pelo conjunto de montadoras e o setor de autopeças no Brasil girava em torno de 1:3. Na década de 90 esta proporção caiu bastante chegando, em fins de 1998,  a 1:1,7. Para fins de nosso cálculo utilizaremos, com folga, 1:2. Digamos que para cada emprego gerado no setor de autopeças ainda fossem gerados outros três na produção de insumos (o que certamente é um exagero, além de ser um efeito muito diluído pois a respectiva produção - como de aço, por exemplo - não seria destinada exclusivamente para aquela fábrica e nem mesmo para a indústria automobilística) e mais três empregos fora da cadeia produtiva (vale a observação anterior porém com efeitos ainda mais diluídos). Isto nos daria um total de 14 empregos indiretos para cada emprego gerado diretamente pela montadora. Ou seja, estaríamos bastante "generosamente" falando, no caso da Ford/Guaíba, de um número total (dentro e fora do Estado) entre 21.000 e 25.200 empregos gerados indiretamente (é claro que não se deve considerar certos encadeamentos "para frente", tais como de revendedoras e oficinas, pois estes existiriam mesmo que a fabrica não fosse no RS).

Para concluir, note-se que neste caso estamos, em princípio, estritamente de atividades de uma unidade produtiva. Porém uma avaliação qualitativa deve também incluir as atividades de projeto, pesquisa e desenvolvimento, que são as mais valorizadas na estrutura do emprego. Qualquer que seja a estratégia de produção adotada, custo a crer que estas atividades de projeto (e demais correlatas) estejam previstas para se concentrar no interior da (ou no entorno à) fábrica de Guaíba, quiçá mesmo no Brasil.
 
 
José Ricardo Tauile
 



 
Comentário final
 
 
O prof. Tauile mandou o texto também para Zero Hora, pedindo a publicação. Vamos esperar que eles publiquem já que, infelizmente, nem toda a população do estado tem acesso ao Não.

Não tenho a expectativa de que esta carta ou qualquer outra análise séria termine com o festival de chutes na batalha verbal Ford/Não-Ford. Aposto que ainda ouviremos muitas vezes o Buzato, o Berfran e o Onyx repetirem que o estado perdeu "100 mil empregos ou mais" com a saída da Ford. Está mais que provado que a mídia aperfeiçoou a frase de Lincoln: é perfeitamente possível enganar o número suficiente de pessoas pelo tempo que for necessário.
 
 
Jorge Furtado
jfurtado@portoweb.com.br
 



Conheça a Revista de Economia Contemporânea do Instituto de Economia da UFRJ, que tem o Proefessor Tauile no Conselho Editorial, em http://www.ie.ufrj.br/revista/Index_htm.htm. E saiba o resultado financeiro da Ford em 1998 em http://www2.ford.com/finaninvest/stockholder/stock98/ar98pdf.html. Depois volte para o...