Memórias em dois tempos
(quase verdade, quase ficção)
por Francisco Ribeiro
 
 
1 - A caminho de Amsterdam:
 
Genéviève entrou na minha vida numa viagem de ônibus, Paris-Amsterdam, no começo de abril de 84. Já tinha aprendido a trocar o trem pelo autobus, mais barato, e sem aqueles atropelos das gares. Na estrada, rumo ao norte, a paisagem é plana e monótona. Frio e tenebroso inverno, que se alongava, neve em abril, e saudades daquela cabana de pedra, numa montanha do Midi, na França, no qual ficara a metade do mês de março, lendo, bebendo bordeaux e devorando e sendo devorado por Roberta que, apesar dos meus pedidos, voltara para o Brasil. Isso há uma semana, e agora estava ali, o aquecedor ligado, ambiente morno e enfumaçado, quando fui avisado pelo motorista espanhol que seríamos obrigados a parar na aduana belga. Era o mesmo que me conduzira a Londres, dois anos antes, na minha primeira viagem à Inglaterra, detalhe sem importância, como vocês poderão perceber ao longo da história. Mas fica o registro.

As luzes acenderam e os  passageiros, até então xifópagos dos seus indefectíveis walkmen, puderam cruzar olhares tímidos uns para os outros. Claro, tínhamos nos visto antes, na Place de Denfert-Rocherau, em Paris, no embarque. Mas ali o clima era de cada-um-dever-estar-na-sua, bastante ostensivo. Agora não, o repertório de olhares era variado, a quase paquera da venezuelana, magrelinha, o desinteresse mútuo, na maioria, ou o ar invocado do árabe, quase desafiador, ou estaria ficando paranóide?

O negócio era moitar. "O sr vai mal?", perguntou uma senhora. Sim,obrigado, e não preciso de nada. Passaportes  eram solicitados, o que possibilitava boças, ou a falta de, numa atitude ainda mais boçal, como a italianinha, gostosinha... mais je suis europeene, disse, fazendo um tipo de beicinho que revelava adorar uma felação. DÁ LOGO ISSO AQUI SUA VACA... SÓ A SOFIA LOREN... QUE VIAJA DE MERCEDES... PASSA PELA FRONTEIRA SEM PRECISAR DAR EXPLICAÇÕES, pensou, acho, o gendarme, cinqüentão, o olhar frio de quem come criancinhas, e a italianinha não era de se jogar fora.

Du calme, gina, arrisquei, argumentando que, ao lhe pedir o passaporte, o policial, com aquela troca de olhar, blue avec blue, no fundo tinha um senso igualitário e não queria ser chamado de racista pour les barbares - latino-americanos, africanos - que compunham 90 por cento daquela e de todas as excursões da Aliança Francesa. Estourou o balão do chiclete na minha cara, fazendo um beicinho que revelava ser uma chupadora de pica. VOU PASSAR A MÃO NO TEU TRASEIRO... NÃO TIRA PEDAÇO!! Estes gringos... VÃO SE FUDÊ.

Foi então que notei Genéviève, digo, encarei-a, pois como não perceber um mulherão daqueles? Une clope, disse, me oferecendo o maço de Malboro. Era parisiense, cuja mistura, pai alemão e mãe espanhola, tinha resultado, viria a descobrir, num furacão pragmático. Era alta, loira, coxuda e, para deleite da minha caboclice, tinha um bundão bem gostosão. O rosto era bonito, quando sorria, destaque para os olhos, frios, azuis, cortantes. Não me intimidaram. Uma delícia que, acho, conquistara pela minha ironia, l'esprit, tão apreciado desde Decartes, na brincadeira com a italiana.

O clima era de simpatia, sentei do seu lado e comecei a empregar minha tática de sedução, falar feito um louco sobre rock, livros, o último filme do Wenders e o Melkweg, entreposto de "especiarias", ah! as Índias ocidentais, onde nos aguardavam shows, malucos e baseados. Ela não se incomodou quando, faltando duas horas para o término da viagem, minha perna "distraidamente" encostou na dela e ficou. E se a gente transasse no ônibus? Tinha muitas histórias de brasileiros, na Escandinávia, trepando em trens, train fuckers, como já eram conhecidos là bas. Numa evolução natural, poderia prolongar para os ônibus. Ninguém moveria um músculo, receosos de perturbar a nossa manifestação espontânea. Depois tinha a italianinha sentada na minha frente, que numa falta de respeito jogara os cabelos pra trás, eu num esforço, encolhendo os joelhos. E se eu, depois de acabar, limpasse o meu pau naquela cabeleira? COM LICENÇA MADAME. O CHAUFFEUR JÁ PASSOU O ESPANADOR E EU GOSTARIA DE DAR UMA ESTICADA. PODERIA RETIRAR OS SEUS PENTELHOS, PERDÃO, CABELOS, SE NÃO FOR INCÔMODO? OBRIGADO. Entrávamos nos países baixos, o negócio era afundar, afundar como dizia aquele versinho. Não abra a comporta do dique, não sei  se esta merda flutua.

O porto, imensos navios, foram as primeiras imagens ao acordar. Olhando os preços das acomodações, propus a Genéviève dividir um quarto, com duas camas, banheira e vista para um dos canais. Não estava tudo escrito no painel, só descobrimos que o quarto era assim quando entramos. Assim nos livramos do  cheiro de chulé, peidos e outras promiscuidades de dividir o quarto, não sou macaco, com meia dúzia de pessoas. Subi assoviando, ingênuo, praticamente de pau na mão, sonhando em repetir Lennon e Yoko (aquela bunda horrorosa), o quarto trancado, posando para a imprensa no terceiro dia, exaustos, porém dispostos a trepar mais 48 horas, em protesto contra os holandeses, que teimavam em roubar espaço do mar. Recusaríamos receber a rainha. A cidade convida ao delírio, mas aquele olhar frio de Genéviève, azul, como aquelas marinhas na parede, me botou os pés no chão, o pau
apertado na calça, pedindo passagem, querendo sair. LIBERDADE! Conformei-me e comecei a admirar a performance daquele corpão, a mão habilidosa enrolando a echarpe marrom no pescoço, e quando dei por mim, sem ironia, estávamos caminhando, um grau negativo, para o museu Van Gogh. PUTA QUE PARIU. "Quero te levar num lugar antes”, falou. Vamos.

Não foi uma transa difícil. Era só uma pequena lição, suave, quase gentil, não fosse a minha afobação-frustração, visível. Se divertia, a moça, e me conquistou, definitivamente, quando colocou, quentinho na minha mão, um delicioso wafle, vendido a um guilder por um simpático velhinho. Todos parecem simpáticos na Holanda, exceção do Werner, berlinense, pintor, amigo de Genéviève, há cinco anos morando em Amsterdan. Ele queria ser Van Gogh e quem ela traz? Gauguin, o selvagem. Senti um bafo de hostilidade atrás daqueles dentes amarelos, tentando dissimular, TÁ COM DOR DE DENTE Ô CARA! o sorrisinho ao oferecer chá, que recusei, deixando-o mais puto. Será que terei de cortar a orelha dele? EU SEI QUE TU TEU TEU BUNTA UMA VEIZ ALEMON, gritei, rindo, sabendo-me incompreensível. Impossível quebrar o gelo, o cara tava com ciúmes, e comecei a andar pela sala, a olhar aquelas telas, c ores, e mais cores que iluminavam a peça de amarelos, verdes, etc.

Não gostei  quando ele  grudou e resolveu nos levar até o museu Van Gogh, dirigindo o Citroen feito um assassino, os dois falando alemão, e eu já querendo me mandar, quando ela pegou na minha mão e não largou. Segurança, olhei o Werner, que descobri falar um francês dez vezes melhor que o meu, com simpatia, e agradeci quando me passou o pacote de tabac Samsom, junto com a seda para enrolar o cigarro. Nos próximos 13 anos, até parar de fumar, seria a minha marca de tabaco preferida. Vejam só... é assim mesmo.

Genéviève estudava jornalismo. Eu já era jornalista. Era seis anos mais nova, e muito esperta. Comecei a levar a sério aquela história de Gauguin: teria eu encontrado a minha Mette? Terei que fugir? Eu, um "garotão" de 27 anos, ali naquele café antilhano, beijando-a, esquecendo do mundo, sob os olhares camaradas de Werner e Kluivert (o próprietário do bar, não o jogador, aquele desgraçado, embora já tivesse nascido). Cigarros, baseados, muita fumaça e o reggae, rolando a mil, aquecia as mentes, balançava os corpos, um contraste com o ambiente frio e loiro do lado de fora. Kluivert começou a mostrar os seus quadros, que cobriam todas as paredes do café. Era mais um pintor naquela terra de moinhos e, enquanto a fama e a grana não pintassem, ia vendendo café e maconha pra moçada do mundo inteiro. Boa gente o Kluivert, muito agitado, gosta de sacudir as tranças, entre uma e outra explicação dá pequenos abraços em Genéviève. É a tática dele. ISSO, NEGÃO: CUTUCA O BALAIO... Werner me olha, tá se divertindo o sacana. Melhor sair e andar no vento límpido e gelado. Parei diante de uma bela vitrine de livros: uma bíblia, enorme, repleta de iluminuras de 1615, primeiras edições de livros de Shakespeare, Molière. Bela placa de madeira, na entrada: DE BOER, LIVREIRO ESPECIALISTA EM EDIÇÕES E MANUSCRITOS RAROS, traduziu o balconista português. Kluivert, De Boer, não podia prever o futuro, mas me lembrando destes nomes hoje, parecia que eu estava sendo perseguido pela seleção holandesa.

No caminho para o Melkweg a fome me conduziu para diante de umas máquinas de salsichas fritas, um guilder cada. E enquanto  as deglutia, comecei a arquitetar um plano que 11 anos mais tarde me renderia um filme de curta metragem. Elas, aquelas malditas lingüiças que um dia haviam seduzido Catarina Palse, talvez antepassada longínqua daquela bailarina estampada no affiche, divulgando a única apresentação do Ballet Húngaro, 27 de abril, no Royal Theater de Amsterdam. Preço: 50 florins.

Já estava na terceira caneca de cerveja quando percebi Genéviève, junto com o Kluivert. PORRA, QUEM FICOU CUIDANDO DO BAR? Ela me vê, vem séria, coloca um caderno sobre a mesa na minha frente. Aponta a capa, tinta fresca, onde percebo um homem, ajoelhado, diante de uma caveira, fazendo uma oferenda de papel e tinta. Pergunto se é um despacho. Ela ri, melhor assim, "O Werner disse que é o teu futuro, se você não conseguir  segurar a vela". Senta, ofereço uma cerveja. Recusa. Chega o Kluivert, um enorme baseado na mão. Oferece pegas. É ignorado. Sai. VIENT, ON VA SE BALADER UN PEU!!! Saímos.

Percebi que, na primeira vez, ela me comeria, portanto, escolheria a hora e local, numa travessa, depois da meia-noite, quase zero grau, sou macho, em pé, enrolados nos sobretudos. Se alguém estiver interessado, posso informar que o meu pau não congelou. Estávamos felizes, as pernas cambaleantes, quando subimos no bonde, rumo ao leito macio e quente.E o tempo passou.
 
 
2 - Rio de Janeiro, verão de 99:
 
"Islas Cagarras... Cagarras!!!", grita o argentino, apontando o pequeno arquipélago em frente para o compatriota. Os dois riem muito. Já estão na terceira caipirinha e traçando acarajés. Se continuarem, atrairão a coléra dos deuses, e se lembrarão que nome é destino, e, breve, terão que correr até o banheiro do Posto Nove, sempre lotado, e a única alternativa será sujar ainda mais o já imundo mar de Ipanema. Pensava, elocubrava, até ver aquela balzaquiana levantar da roda de violão de onde soprava um budum de maconha. Genéviève. O corpo havia engrossado, se transformado naquilo que chamamos de potranca. Bunda gostosa não tem pátria, é aristocracia. E assim, ao se encaminhar para o mar nauseabundo, provocou a dança dos pescoços, "mas que baita rabo", entre nativos e turistas. E se eu corresse, impedisse que ela mergulhasse na água suja? DEPOIS EU TE LEVO PRA BARRA. ISSO AQUI É SÓ UM ESCRITÓRIO!! E agora?... seis metros... 15 anos de distância... o que se passou? Ora, tudo. Dez minutos depois rumávamos para o meu ap, na Gávea. Não houve protestos na roda, todos entenderam, Droit du seigneur.

Havia uma mostra surrealista e fomos ver Paris qui dort,do Renée Clair, no Museu de Arte Moderna. Daí, a pé, sempre um risco, para um restaurante, ao lado dos Arcos da Lapa. Lulas à milanesa, molho tártaro, muito vinho branco, sorvete de jambo, uma iguaria que quase nos fez dançar em volta da mesa. Tudo por conta da Genéviève - afinal, era preciso torrar aquelas diárias. Viera para cobrir o carnaval, prêmio pelo sufoco que passara em Argel. Não pedi detalhes. A barra tinha sido pesada, perdera colegas. E agora estava no Rio, queria se divertir, e eu não iria decepcioná-la. Saímos do restaurante. O tempo mudava rápido, nuvens corriam pela noite morna, modorrenta, chuva à vista. Corremos. Genéviève estava em Santa Teresa, e mais uma vez, um bonde nos conduziria até a cama. Não está em nenhum manual de sobrevivência, mas não aconselho ninguém a transar em pé numa travessa escura no Rio. Chovia quando, depois de transarmos, tomamos nosso primeiro banho... Haveria outros, até às quatro da matina, quando o barulho de rajadas de R15, pra que conferir, se misturava com o barulho dos trovões. Olhei para ela, piscou o olho, me convidando pra dormir. "O problema são os mísseis", disse.
 
 
Francisco Ribeiro
fcorib@mandic.com.br
 


Mais sobre o jogador (não o proprietário do bar) Patrick Stephan Kluivert, em holandês, no endereço http://www.freeyellow.com/members6/killersmoke/. Mais sobre "Droit du seigneur" como princípio jurídico e sua presença na ópera de Mozart "As Bodas de Fígaro" em http://www.artswire.org/mrd/nozze/1787.droit_du_seigneur.html. Depois, volte para o...