A ÁRVORE

Por Cesar Nunes

          A porta tinha duas fechaduras, mas a de cima não funcionava muito bem. Me apavorava a idéia de ficar trancado pelo lado de fora, e eu passava a chave apenas no fechal de baixo, maior, desses que podem ser abertos à mão quando se está dentro de casa. Foi fácil para o pivetinho-filho-da-puta entrar pela janela da cozinha e sair do apartamento com um sorriso nos lábios, pagodeando na minha TV. Na pressa, deixou o controle remoto, que eu costumava datilozapear com talento ambidestro, e que agora não passava de um remoto objeto decô.

          Eu era novo na cidade e me eram poucos os conhecidos, um ou dois além do pessoal da firma. Amigo mesmo, nenhum. Não que os houvesse em qualquer outro lugar. Nunca fui muito popular. Era o goleiro do time, mesmo sendo o dono da bola. Algo como o azulejo que falta no banheiro, perto do chão, atrás do vaso. Ninguém nota, somente eu percebo a sua ausência. Sempre foi assim comigo, só eu notava que não tinha ido à festa. Talvez por isso a televisão me fizesse tanta falta. Eu teria que abdicar de alguns luxos durante vários meses. Eu sobreviveria, mesmo à base de Q-Suco e goiabada com queijo. E compraria outra TV igualzinha à que os malandros levaram e teria dois controles remotos, um para cada criado-mudo. Mudos, remotos, roubados, vazios. As palavras da minha vida nunca foram promissoras.

          Era domingo, e eu nunca fiz nada aos domingos, além de comer bolachas na frente da TV. Resolvi abrir a janela. Era a primeira coisa que dona Noêmia fazia, todas as segundas-feiras, quando vinha limpar o apartamento. Eu mesmo não me dava a este trabalho, porque a orientação solar era ruim e matava as plantas. Ou talvez elas morressem por falta de luz, não sei. Quando elas morriam, eu comprava outra, como se faz com os cachorros.

          Era um belo dia de outono, e a luz de Porto Alegre é linda no outono, dizem. Parece que Nova Iorque também é linda no outono. Não sei, só conheço o que vi nos filmes. O mais longe que já fui é Sombrio, em Santa Catarina.

          Uma casa antiga separava meu edifício do prédio ao lado, e uma árvore tão velha quanto a casa fazia as vezes de um biombo vivo entre minha janela e a dos vizinhos. Era bonito na primavera, quando Dona Noêmia abria a janela, de manhã, e aquele verde que eu só tinha visto nos episódios do Mundo Animal invadia a sala.

          Mas era outono e como eu, a árvore se vestia de cinza, os galhos feito mãos magras de dedos finos, coando imagens das janelas, quase todas escancaradas, algumas com cortinas transparentes. Os varais sanfonados carregados de roupas deixavam adivinhar quem morava em cada uma das janelas. Difícil era imaginar que houvesse um apartamento por trás das esquadrias de alumínio. Como as pessoas, os vidros, inescrutáveis em sua falsa transparência, passavam os dias a refletir o que acontecia do lado de fora, para somente à noite, quando as luzes eram acesas, permitirem que eu devassasse a intimidade alheia. Abri o vidro da minha própria janela e me debrucei sobre o parapeito, como se com isso pudesse chegar mais perto do outro prédio. Uma garota cruzou de uma ponta à outra uma janela em frente à minha e outra ao lado daquela. Acho que saiu da cozinha, cruzou a sala, passou em frente à porta do quarto e chegou ao banheiro, ou o contrário. Eu a perdi de vista quando uma gota d'água fria me gelou o pescoço. Olhei pra cima e reconheci a velha gorda que morava no apartamento acima do meu, pendurando suas roupas encharcadas. Ela também me reconheceu e cumprimentou, sem se desculpar. Acenei com a cabeça, sequei o pescoço e tornei a olhar para o apartamento da garota, a tempo de vê-la com uma toalha na cabeça, baixando a persiana. Era bonita nos seus vinte e poucos anos e usava um coque de toalha cor-de-rosa. Me parecia ser a mesma pessoa em quem eu havia esbarrado na padaria, ou na parada de ônibus. Não a veria mais nesse dia. Deixei as cortinas e persianas abertas até tarde, e ela não apareceu. Desliguei o gás e achei melhor fechar as janelas antes de dormir. As grades que protegiam as venezianas do apartamento térreo serviam de escada para os amigos-das-TVs-alheias que aceitassem o convite feito pelas janelas abertas. Mal podia esperar pela hora do almoço do dia seguinte, quando compraria outro aparelho de TV e minha rotina voltaria ao normal.

          Acordei cedo e bem disposto. Vasculhei as gavetas até encontrar todos os documentos necessários para obter crédito e só então tirei o pijama. Tomei banho e saí para o trabalho, radiante. Meu apartamento havia sido assaltado, enfim algo interessante para contar aos colegas. Por algumas horas ao menos, eu seria a vítima, afinal. Era eu o anônimo e heróico trabalhador que sofria os reveses de uma sociedade violenta, o personagem principal da história. Estava tão contente que relatei o furto a todos os conhecidos que se encontravam nas vizinhanças do prédio, desde o dono do boteco onde comprava cigarros e fazia a fé no bicho até o Chinês, que não era chinês mas era o dono da lavanderia. A moça da padaria, habituada a ver-me calado engolindo sofregamente a taça-pão-e-manteiga que me servia às quartas-feiras, ficou espantada com a súbita metamorfose: o tímido rapaz mais parecia agora um repórter policial de rádio AM, falava sem parar, relatando detalhes escabrosos da criminalidade que invadiu as soleiras de nossas portas.

          Fui exultante até o ponto de ônibus, antevendo a cara da turma do escritório quando, displicentemente sentado diante do meu terminal, relatasse o ocorrido.

          O dia era mesmo especial: ensolarado, com nuvens passeando rápido pelo céu. Era um dia tão incrível que o ônibus dobrou a esquina assim que eu cheguei no ponto. Nos dias comuns, eu dobrava a esquina e o Mercedão partia. Era preciso correr cinqüenta metros em sete segundos, pois o próximo só viria dali a vinte minutos. Mas nesse dia diferente o ônibus chegou, e com ele a garota do cabelo atoalhado, esbaforida, acenando para o motorista esperar. Fiquei paralisado, com os pés no chão, olhos fixos na garota e a mão esquerda segurando o ônibus. Ele não poderia sair dali, estava preso a mim e eu pensava estar pregado no chão. Fiz um sinal para que ela subisse os degraus e ela sorriu, agradecida. Mal havia entrado no ônibus e o motorista arrancou violentamente, quase me fazendo cair. Tudo bem, ela estava ali, e eu também, eu e minha história. Qual seria a sua? Eu a observava, mergulhando na bolsa, à procura da carteira, como se nada mais estivesse acontecendo. Paguei a passagem e fui correndo sentar-me ao seu lado. Mencionei alguma coisa a respeito da demora até que o próximo ônibus chegasse. Dei sorte. Ela era uma destas pessoas que sempre tem assunto e a conversa fluiu como nunca. Estávamos quase chegando ao ponto onde eu deveria descer quando finalmente consegui mencionar o episódio do televisor, e ela então contou-me outros tantos casos como esse, como ela os sabia, de violência, da cidade, do Rio, Miami e até Chicago. Nair, esse era o seu nome - engraçado ser um palíndromo do meu, Rian, homenagem a uma antiga confeitaria onde meus pais se conheceram - trabalhava em uma loja de roupas esportivas, era gerente, perto do escritório. Claro, almoçaríamos juntos, mas e a TV? Azar, ficaria para depois do trabalho.

          Havia muito eu não me interessava por alguém. Há mais tempo ainda ninguém se interessava por mim. A última vez que eu conversara com uma garota tão bonita fora numa festa da firma, para a qual convidaram os cônjuges dos funcionários, e eu me apaixonara pela mulher do chefe de seção, até hoje uma das principais musas nos meus cultos a Onã. Entrei no escritório arfando, e já não sabia mais o que falava primeiro, se do roubo ou do arrebatamento. Àquela altura a emoção transcendia o contingente, e talvez eu fizesse mais sucesso como garanhão do que de quatro, na costumeira posição de coitado. Mencionei apenas en passant o episódio da TV. Pela primeira vez, depois seis meses de casa, fui convidado para o almoço. Claro que não aceitei. Dois compromissos em um mesmo dia, um recorde, e, lástima, ter de declinar de um deles.

          O serviço habitual fluía como nunca e o tempo não passava, como sempre. Aos quinze para o meio dia, aleguei compromissos e saí sem assinar o ponto. Rumei diretamente para a loja onde trabalhava Nair, e ainda faltavam dez minutos para a hora do encontro. Olhei na vitrine as roupas que jamais vestiria, pensei em comprar joelheiras de patinação para Dona Noêmia esfregar os ladrilhos, mas achei de mau gosto. Entrei na loja e procurei pela gerente. Que bobagem... É claro que ela deveria estar no escritório, não atrás de balcões e araras. Olhei para cima e não a vi atrás da janela de vidro. Pensei em tomar um chá no bar ao lado mas desisti, temendo um desencontro. Esperei.

          Perguntei por Nair a uma balconista. Sem levantar os olhos do abrigo que dobrava, a moça respondeu que não havia ali ninguém com esse nome. Ainda tentei argüir, mas a garota esquivou-se de prestar qualquer informação. Pedi para falar com a gerente, e a resposta veio seca:

          - Ela foi presa.

          Saí da loja atônito, pensando no que teria acontecido. Um equívoco, naturalmente. O que faria um anjo na cadeia? Pior, o que fariam com aquela criatura delicada em uma jaula? Certamente bem mais do que eu poderia imaginar. Dei meia volta, pedi detalhes, ameaçaram mandar-me prender também. Melhor desistir, pois quem havia permitido que se trancafiasse um sonho, faria qualquer coisa com uma triste realidade como eu. Almocei e saí em busca de uma loja de eletrodomésticos. Encontrei em oferta o aparelho que procurava. Estava saindo de linha, me disseram. Os vinte e três minutos de espera até que me fosse aprovado o crédito foram dedicados a toda a sorte de absurdos, como resgatar Nair da prisão ou queimar a loja onde trabalhava.

          Coloquei o televisor em um táxi e fui para casa. Telefonei para o trabalho e menti sobre meu estômago. Sempre fui assíduo e pontual. Acreditariam. Instalei a TV em seu lugar, brinquei com os controles e fui para a janela. Não havia qualquer movimento anormal no prédio. Àquela hora da tarde, quase todas as janelas se encontravam abertas, como a de Nair. Fechadas, apenas as do térreo e primeiro andar, para evitar assaltos.

          Nunca havia assistido tantos programas femininos como naquela tarde. Falavam de coisas que eu não conhecia muito bem, como T.P.M., L.B.V., crepe e Lagerfeld. As manequins trajavam roupas esquisitas e pareciam sem vida. Nair não se prestaria a um papel ridículo como aquele.

          Toda aquela movimentação me deixou sem cigarros. Fui até o boteco e aproveitei para sondar a frente do prédio de Nair. O zelador, um baixinho casado com uma mulher enorme e sempre grávida, conversava animadamente com o carteiro e, ao me ver passar, perguntou se eu havia pego os ladrões e, para minha surpresa, se eu conhecia Nair. Respondi que não, não sabia quem eram os ladrões e que sim, eu a havia conhecido recentemente. Fiquei sabendo então que ela fora presa por ter assassinado o amante, um homem casado que a sustentava.

          Me senti mais idiota do que de costume. Voltei para casa, olhei novamente para o apartamento de Nair, escrevi uma carta de amor e dormi. No dia seguinte, embebi a carta em colônia, e coloquei-a, anônima, na caixa de correio perto do escritório. Acendi um cigarro, dei-lhe quatro tragadas curtas e o enviei em anexo.