O lacre azul de Murphy

Por Clarah Averbuck

          Só Deus sabe porque, mas acordei com I wanna be sedated na cabeça. M-papatchupa m-papatchupa, I wanna be sedated. Não. Ramones é demais a essa hora. Pipipi, faz alguma coisa no quarto. Irritante, isso de ter ouvir apitos pelo quarto e não saber de onde vêm. Pi-pipipi-pi. Ainda por cima não é um apito regular, é um barulhinho epilético, chato. Saco. Sentei na cama, de mau humor. Chuva, frio, pipipi, I wanna be sedated, e agora, o maldito homem do gás berrando pela rua. Por que eles berram? Não podiam ser mais civilizados? Parece que estão sofrendo, sendo sodomizados, "olha o Gááássss!", que inferno. Pior ainda é a música do lacre azul do cachorrinho, em quem a gente pode confiar. Yeah, right. Eles combinam, sabem a hora em que estou dormindo, e passam na frente da janela oferecendo gás só pra me acordar. Eu sinto. Ainda jogo um botijão na cabeça dessa gente. Hunf.

          Sento na cama, tateando à procura da luz de cabeceira, e * pafe!*, derrubo o abajur, que se espatifa no chão. Legal. Uhu. M-papatchupa, m-papatchupa, I wanna be sedated. Levantar. Cadê meus óculos? Damnit. Não consigo procurar meus óculos sem óculos. Acho que tava aqui, do lado da *crash* errrr, eram esses. Esses que estão quebrados debaixo do meu pé. Tudo bem, foi só a haste. Coloco os óculos, que ficam tortos, mas pelo menos dá pra enxergar o mundo de maneira menos impressionista. Sim, porque Monet era míope, você sabe. Qualquer míope vê o mundo segundo Monet.

          Tomar café, pra ver se pára a desgraceira. Caminho pra sala, de meias e tiptop. Sim, eu uso tiptop. De gatinhos. É meio difícil pra ir ao toalete, não tem a abertura traseira, mas é quentinho igual. Ah, ufa, na sala não tem pipipi. M-papatchupa, m-papatchupa. Mas tem uma mesinha de centro, e ela está torta. Todos os meus movimentos são previamente calculados e analisados, mas a mesa se encontra fora do lugar. * TUFT*, topada, bem no minguinho, aquele que tava sem unha por causa da pedra na cachoeira. Doeu, sabe? Meu dedinho lateja e estrelinhas de desenho animado giram sobre ele. Sooper! I wanna be sedated. Ao entrar na cozinha, *splash*, piso na água que meus felinos gentilmente derrubaram da tigela. Oh joy. Deve ser karma. Devo ter sido muito má em outra vida, e hoje estou pagando por isso. Devo ter fuzilado mártires. Devo ter estuprado virgens. Epa, isso eu ainda faço. Karma imediato, então. Café. Bolachinhas. Cadê o jornal? Vou ali pegar. Considerando o início do dia, não podia esperar menos do que o jornal boiando numa poça, a única poça que tem na frente da porta. O jornal nada: os jornais. Os três, dividindo a mesma poça. Bonito, isso. Chega a ser poético.

          Chuva do demo, vai estragar meu dia. Preciso pegar dois ônibus. Hoje é o único dia da semana que preciso pegar dois ônibus, e chove. Claro que chove. M-papatchupa, m-papatchupa. Não. Não quero mais essa música na minha cabeça. Não consigo mais pensar. Socorro. Ramones não. Aqueles velhos pelancudos que depois de 30 anos ainda não aprenderam a tocar e usam perucas pra tentar enganar seus fãs, que de tanto cheirar cola acabam acreditando. I wanna be sedated. Que inferno. Tomar um banho, né? Pra ver se dá uma melhorada, upa-lêlê, vamos lá, garota. M-papatchupa, m-papatchupa, a água está fervendo. M-papatchupa, m-papatchupa, a água está gelada. M-papatchupa, m-papatchupa, odeio esse chuveiro. M-papatchupa, m-papatchupa, a toalha solta felpinhas. Meu quarto está gelado. O aquecedor não pode ser ligado junto com o computador, senão derrete a tomada. Taquipariu. Estou entendendo esse esquema de I wanna be sedated.

          Atrasada. Atrasada pra tudo. Acho que vou fazer uma banda cover de Ramones, e ficar tocando por aí. Você sabe, músicos são despreocupados e irresponsáveis. Artistas. Artistas têm essa alma livre. Bando de maconhero, isso sim. É, maconhero, sem i, tenho licença poética. Maconheros e felizes. E eu aqui, ralando. Que mundo injusto. Que vidinha, essa. M-papatchupap m-papaptchupap, I wanna be sedated.