A ARTE DA RECUSA

pot Paulo Bentancur

 

Todo homem é mais parecido com sua época do que com seu pai.

Provérbio árabe

 

Não.

É assim que eu reajo. Não é possível dizer sim, não se pode ir aceitando, abrindo a porta a qualquer vagabundo, engolindo o que a humanidade engole. Não e pronto. Não existe outro modo de salvar.

Decidi ser escritor aos 12 anos. Aos 15 já era conhecido na minha cidadezinha, publicando em tudo que era jornal de escola, clube, bairro, sempre convidado para imprimir meu nome, fosse onde fosse. Fizeram comigo o que fazem com todos: criaram um monstro, um engolidor de papel, insaciável manipulador verbal, uma fábrica ambulante de frases.

Acumulei prêmios de juventude: cartões de prata, diplomas, troféus de plástico e de madeira – um entulho que, cedo ainda, aos 23 anos da primeira prostração, se revelou estéril, um equívoco.

Um dia joguei tudo num caixote de madeira e atirei o caixote na despensa.

Mas era preciso continuar escrevendo, embora publicar tenha se mostrado, súbito, não só um engano, mas um muro intransponível para o exercício, este sim puro, de escrever. Parei um tempo. Tempo que foi duro, que me entregou a uma aspereza crescente. Passei a duvidar do que saía nos jornais, nas revistas, nos livros. Não bastava a ficção das notícias, agora recuso-me à notícia da ficção, recebo a obra alheia como um sinal de fraqueza, só isso.

Passei a infância, a adolescência e a juventude embalado pelo maldito sim, este prevaricador. Pela fácil aceitação, pelo entusiasmo afoito, pela consagração que dura um segundo, se dissolve e, rindo, se renova indiferente.

Apavorei-me: estavam construindo uma civilização em cima da oferta leviana. Estavam destruindo outra, mais real, por não admitirem que em seus pilares residia a coragem de negar, e negar é admitir a verdade.

Vendi a casa que fora de meus pais, mortos quando eu tinha 18 anos. Era uma casa mais do que confortável, excessiva para mim, filho único e agora sozinho. A perda de meus pais, extirpados do universo à minha volta, separados com violência de uma natureza que até então se manifestara doce, afável, com cheiro de funcho e no máximo de malva, com música dominical dos alto-falantes da igreja que eles freqüentavam, com as conversas laterais entre eles e meus tios; essa natureza, que ofertava brisas, chuvas peneiradas, ventos controlados e mornos, morangos silvestres a trezentos metros da casa; essa natureza esfumou-se, eles desapareceram, da noite para o dia, e essa passagem foi, não tenho dúvida, o primeiro não, mais revelador que todas as facilidades que a minha existência até ali ofertara.

Tive outros não, passei a tê-los seguidamente. E me encolhi, não soube recebê-los e perdi muito.

A arte da recusa é lenta, um diamante que precisa ser polido. Recusa que não devia nortear apenas a literatura, cínica, mas o resto das artes, principalmente as artes plásticas, descaradas ao extremo, capazes de uma embromação que faz de um Bosh, de um Van Gogh praticantes de outra coisa em outro mundo, mais fundos e dignos.

Não tive namoradas. Elas batiam à minha porta, aos bandos. Eram descartáveis, insípidas, caíam a meus pés como as folhas no outono – onde eu morava havia ainda outono, primavera, estações, remédios naturais miraculosos.

O câncer, que vitimou meus pais, levou minha mãe num meio-dia, hora estranha de se morrer, e meu pai três meses depois, às 9 horas de uma manhã de tanto frio que a água congelou na torneira. O mundo edificado para o meu conforto estalava, a brisa começava a soprar mais forte.

Eu estava na faculdade quando fiquei órfão. O seguro de vida deixado por meu pai me garantia um futuro tranqüilo. Meu curso – História – durou quatro anos, ao longo dos quais fui amargando a saudade de meus progenitores, e me chocando gradativamente com as duras lições dos grandes homens. César, Napoleão, José do Patrocínio – gente que provou que a adesão generosa é um suicídio diante do oportunismo do resto da humanidade, gente que soube impor limites, que possuiu pulso mais do que firme para segurar a forçada de barra da gentalha moral.

Não. Esse era o ponto. Não e pronto.

Saindo de Livramento, depois de formado, vim para Porto Alegre, onde a batalha foi insana até conseguir um cargo de professor na universidade federal. Boicotes, preconceitos contra gente do interior que os caras da cidade julgam humilde, ingênua, despreparada; enfim, enfrentei tudo e todos e, de certa forma, venci.

A seguir, comecei a alimentar um ambicioso projeto: criar uma editora. Aliei-me a R. F., que chegara do Maranhão disposto a arrasar todos os quarteirões, principalmente os da poesia. Fora um dos criadores de um movimento – antroponáutica – que ele mesmo se encarregara de demolir com um inclemente artigo que os conterrâneos jamais perdoaram. R. F. assinava seus textos assim, com iniciais que chocavam gente acostumada a nomes pomposos ou corriqueiros.

Fechamos o projeto na mesa da cozinha do apertado apartamento de R. F., às 5 da manhã de um sábado. Não dormíramos, não dormiríamos. Tínhamos um nome, uma linha definida, três coleções boladas. E um artifício interessante: em cada coleção alinháramos uma série de títulos clássicos, ou importantes na história da literatura, para formar uma espécie de fundo editorial. Isso nos daria a noção exata do que queríamos, do que precisávamos. Nosso desejo era sincero: publicaríamos vários livros, todos fundamentais. Para cada original aprovado, riscávamos um nome consagrado da lista e o substituíamos pelo novo autor.

Nossas coleções nasciam prontas, simuladamente prontas.

Era só esperar a chegada de novos textos.

Partimos para a inauguração da editora. Grande festa, grande mídia, o projeto merecia. Nossa estratégia deixou os formadores de opinião nada menos do que perplexos. Tínhamos um selo, intenções bem claras, idéias originais, exigências acima da média, temperamento perfeccionista, e nenhum título.

"É no mínimo inusitado", comentou um repórter da FM local, "o lançamento de uma casa editorial que nada está lançando."

R. F. respondeu rápido: "Lançamos idéias, um nível de exigência maior, e isso representa para a cultura uma contribuição mais significativa do que se estivéssemos pondo uma obra no mercado só para cumprir com nossa obrigação de editores."

"Tu achas", interveio um cronista do segundo jornal da cidade, "que nossos escritores não estão à altura da melhor literatura que se pratica no país?"

"Nosso projeto não prevê proteção estatal." Depois que falei continuei olhando firme para o cronista, que se afastou constrangido.

Luísa Lopes, conhecidíssima editora, bem-sucedida em demasia para comportar-se como concorrente, veio em socorro dos candidatos a editados presentes ao evento.

"Mas o mercado pede sem cessar novidade. E o primeiro papel do editor é atender esse mercado."

"De um certo tipo de editor", disse R. F. Mas Luísa não se afastou, sorriu, bebeu mais um gole de vinho, sacudiu a cabeça, talvez divertida.

A verdade é que a noite transcorreu sem outros incidentes. Nosso selo começava a conquistar um espaço novo. Provocava discussão, fora do hábito dos que o olhavam e temiam pelo seu próprio conforto. Causava um processo quase bizarro: interferia na atuação de outras editoras. Colegas vinham justificar-se.

"Olha, aquele livro que eu publiquei..."

R. F. nem me olhava, obstinado atrás de uma mosca que vasculha o pesado ar em volta. Eu fitava compassivo o editor à minha frente, e alvejava: "É o preço pelo que estás fazendo. Não há outra saída. Te resta o argumento da coerência."

O colega pedia um uísque, duplo.

Eu retornava: "Ninguém está interessado em qualidade; em última instância, ninguém está interessado na verdade. Tanto que mataram a verdade há horas, até os filósofos." Era um papo besta de minha parte, um ponto de vista frágil, fácil de ser desmontado, mas eu desejava ver até onde aquele pessoal seria capaz de ir.

Não era. O editor já se embebedava, e R. F., repugnado, pediu a conta.

"Que gentinha, cara, que gentinha."

"E os escritores não são diferentes", respondi.

R. F. concordou. Pegou a mosca, pôs no bolso. "Essa não faz mais besteira."

O tempo não espera, passa, e nem olha para trás. Os originais vão chegando, no início às pencas, depois um por dia, depois um por semana, depois um por mês. Depois não chegam, vamos em busca de algum remoto candidato. O medo se abateu sobre os literatos antes dispostos ao estrelato; agora nos evitam. R. F. passa as madrugadas fumando e recitando: "Sou um anjo mau, um anjo negro, uma sombra que inibe a luz." É o seu modo de autocomiseração, a sua ironia e a sua dor com todo esse pessoal avesso ao cara a cara.

A editora completa um ano, faz aniversário, e nenhum livro foi lançado. R. F. e eu damos uma entrevista a um noticiário da tevê. Nos tratam como seres exóticos, percebo a malícia oculta atrás de uma frase do apresentador: "Critérios como os de Anselmo Albuquerque e do famigerado R. F. são mistérios só para poucos revelados." Parece aludir a uma seita de fanáticos. R. F. leva na flauta o "famigerado", mas eu não estou para brincadeiras.

Nossa inscrição no Clube dos Editores é impugnada. Sofremos sutil campanha de difamação. Quase dois anos e continuamos procurando um livro, um livro ao menos.

R. F., aliás, escreveu um: Uns bandidos. Eu afinal terminei meu romance, seis anos lutando com a trama um tanto inconvincente de O décimo planeta. Trata-se de um drama familiar, dez pessoas, dez planetas obviamente. Nove realizam dezenas de coisas, mas o irmão mais velho – autêntica consciência da família –, vai ficando para trás, renunciando a qualquer projeto e, se a princípio parece ao olhar dos outros um fracassado, logo demonstra uma sabedoria feita de serena confiança no equilíbrio das forças que puxam o mundo em direções opostas. Passa a ser um tipo de guru, o décimo planeta.

O enredo não é o bicho, admito, mas as relações entre as nove personagens hiperativas e a décima, que tudo decide, jogada em uma rede é, no mínimo, provocante, insolente. Sobretudo porque o poder é de forma indisfarçada exercido pelo pai, seguido da mãe. E também porque a abulia física do décimo astro o pôs numa situação de desvantagem. Evidente é a remissão ao nosso sistema solar, onde um pretenso décimo planeta alteraria tudo.

E agora, o que fazer com nossos dois livros?

Não podíamos publicá-los nós mesmos, sob pena de cairmos no ridículo. E acontecera o pior: eu gostara do livro de R. F., poemas evidentemente. Ele gostara do meu, "afinal um romance destemido", cantarolava de madrugada. Mandamos os dois pacotes para três editoras ao mesmo tempo. Nos devolveram em 15 dias.

Não era o prazo habitual. Essas coisas demoram meses, mesmo entre colegas. Telefonamos para saber as razões, se possível com detalhes. O primeiro editor nos recebeu respeitoso e insinuou que se nos publicasse enfrentaria problemas. "Como assim?", perguntei inutilmente.

O segundo deu as desculpas tradicionais no ramo, de que sua programação já estava fechada para os próximos dois anos. O terceiro alterou-se: "Tão me gozando, é?"

Eu considero que um não seguido de alteração no tom da voz, na temperatura do corpo, de dilatação da pupila, de excessiva gesticulação, não é um não, é um atraso. A negativa de Haroldo dos Reis Antunes, o mais antigo editor da cidade, vinha acompanhada de um ressentimento que me fez oscilar entre a piedade e a impaciência. Eu já perdera demasiado tempo ao me expor à leitura daquela gente, e o gráfico ascendente de seus negócios me apontava a porta de saída.

R. F., naquele dia, parecia estar com bons modos. "Nossos livros te ofenderam de alguma forma, Antunes?" O velho engoliu o suor. "Não confunda livro e pessoa. Quero editar Uns bandidos, não o meu lugar na sociedade." R. F. realmente estava com saco. "Digamos que o Anselmo andou chocando alguns colegas, muito bem, digamos mais, meu caro Antunes, que o meu amigo Anselmo não valha, como ser humano, um só vintém, mas e O décimo planeta, não é um bom livro? Merece continuar inédito?"

"Mas é muita cara-de-pau!" O velho ia acabar caindo ali, saindo direto da sua sala para uma UTI. A não ser que eu tirasse R. F. quase à força e fôssemos embora imediatamente.

XXX

Clique no BACK pra voltar pra capa