A Descoberta de António Lobo Antunes

(A literatura portuguesa à sombra do Nobel de Saramago)

por Paulo Polzonoff Jr.

(polzonof@sulbbs.com)

 

Não me surpreenderia se a imensa maioria dos leitores deste artigo desconhecesse o autor em questão. Ao contrário do nobelizado Saramago, que por aqui é best-seller e tratado a pão-de-ló pelos cadernos culturais, o autor de que fala este artigo raramente é mencionado na grande imprensa.

Apesar de ser um dos escritores portugueses mais traduzidos no mundo, por aqui ele recebe tratamento de escritor obscuro por parte das editoras. Falo de António Lobo Antunes. Ao contrário de seu conterrâneo agraciado com a duvidosa honraria da Academia Sueca, António Lobo Antunes é um escritor discreto até mesmo em seu sucesso. Não sai por aí proclamando, como é comum, sua pretensa genialidade. Perguntado se se considera um grande escritor, ele é taxativo: "Considero-me, pelo menos, um escritor que trabalha muito". Uma exceção entre as exceções, Antônio Lobo Antunes pouco liga para a fama que seus quinze livros trouxeram. Cogitado para o prêmio Nobel de 1996, desdenhou dizendo que se havia algum escritor de língua portuguesa que merecesse tal prêmio este seria o poeta Carlos Drummond de Andrade. "Se não temos grandes políticos, grandes futebolistas, grandes pintores, grandes compositores, então porque é que havíamos de ter grandes escritores? Dizem que os temos... É possível, não sei quanto é que medem", ironiza.

António Lobo Antunes nasceu em Lisboa, em 1942. Formou-se medicina e especializou-se em psiquiatria por pensar que era parecido com literatura. Participou da Guerra Colonial, em Angola (1961 a 1974), experiência que foi o estopim de sua maturidade literária. Em 1979 lançou Memória de Elefante, livro aclamado pela crítica e público. A partir daí foram quinze livros, entre os quais as obras-primas Os Cus de Judas (Prêmio Franco-Português, em 1987), O Auto dos Danados (Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores) e Manual dos Inquisidores.

Lobo Antunes é um escritor compulsivo. Escreve de doze a quinze horas por dia. "Começo a escrever às duas da tarde, quando posso, às dez da manhã, mas nem sempre é possível, e trabalho até às duas, três da manhã, com uma pausa para almoçar e outra para jantar". Este trabalho de artesão, desinteressando de coisas alheias à arte, é a causa da excelência do texto de Antunes. Aludindo à pretensiosa imortalidade que mexe com a cabeça de nove em cada dez escritores, Lobo Antunes diz: "Daqui a cinqüenta anos, tenho a boca cheia de terra. Ser-me-á completamente indiferente que me leiam ou não. Talvez até tenha uma estátua eqüestre, a cavalo no editor, e uma viúva para inaugurar a estátua, o meu tempo é agora, porra!"

São afirmações como esta que fazem de António Lobo Antunes uma espécie de escritor exilado em seu próprio país. O título de maldito, porém, não o incomoda. "Eu gosto desta terra. Nós somos feios, pequenos, estúpidos, mas eu gosto disto."

Apesar de recorrer sempre a memórias da Guerra Colonial, António Lobo Antunes não é um escritor político. Seus livros tratam de seres humanos em meio a conturbações políticas, mas sem tratar desses assuntos com profundidade. Em O Auto dos Danados é possível ouvir a baderna que se sucedeu à Revolução dos Cravos, em 1975, mas os personagens de Lobo Antunes são seres passivos da História. Mesmo quando fazem parte do governo, como o ministro de Salazar em Manual dos Inquisidores, Lobo Antunes se preocupa com a dimensão humana do homem público. "Há nos meus livros um fascínio muito grande pelas casas das porteiras, pelos naperons, pelos bibelots em cima da televisão, pelo horror ao vácuo que leva aquelas pessoas todas as superfícies planas. Já o Thomas Mann dizia qualquer coisa do tipo de «o que faz de mim um artista é o amor pelo banal", explica, citando uma de suas maiores influências. Lobo Antunes resume sua temática a uma palavra: ternura. "No fundo nos sentimentos, nas emoções, no fundo em face dos grandes temas que acabaram por ser sempre os mesmos ao longo dos livros todos: a solidão, a morte, necessariamente também a vida, depois o amor ou a ausência dele, e penso que cada vez mais a ternura."

Seu texto, porém, é agressivo. Tanto pela prolixidade das belas metáforas, quanto pelos personagens, que vivem à beira de um colapso de si mesmos. Não há amor nas histórias de Lobo Antunes ou, por outra, sempre há o amor em sua fase derradeira, de conflitos insolúveis e discussões bizarras.

"Agressivo? Acho que sou extremamente terno", diz ele. As obras de Lobo Antunes disponíveis em edições nacionais são: Manual dos Inquisidores (Rocco, 32 reais), A ordem natural das coisas (Rocco, 30 reais), Os Cus de Judas (Marco Zero, 19 reais). Em edições estrangeiras (disponíveis através da Internet) é possível encontrar quase toda a obra de António Lobo Antunes: Auto dos Danados, Conhecimento do Inferno, Crônicas, Explicação dos Pássaros, Fado Alexandrino, Memória de Elefante, A morte de Carlos Gardel, As Naus e Tratado das Paixões da Alma. Leia, a seguir, trechos da prosa de António Lobo Antunes:

Não são só os ratos, aliás, que moram conosco no sótão. Possuímos um jardim zoológico completo de formigas, melgas, traças, centopéias, aranhas, grilos, carunchos, que presumo alimentarem-se da mesma falta de comida do que nós, sem contar as borboletas que se esmagam contra as lâmpadas, no verão, e se reduzem de imediato a um pozinho escuro de verniz. E há os pombos. E as rolas. E os barcos, como lesmas, no Tejo. E os vizinhos em camisola interior, incapazes de voar, crucificados nos craveiros das varandas. E tu e eu, cada vez mais transparentes e magros, a prepararmos o pequeno almoço de meio grama de heroína da injeção da manhã.

(do Auto dos Danados)

Dei por as coisas acontecerem quando o Joãozinho começou a chorar. Eu estava no jardim preocupada com a febre das roseiras, a construir uma tenda que as protegesse do vento e do início não julguei que fosse a criança a chamar-me mas uma pomba viúva num cedro ou um ganso perdido no novelo dos buxos até que me puxaram a saia, eu sem me voltar

- Quieto Adamastor

o vento tombou de súbito, as pás do moinho calaram-se, os gerânios e as estrelícias deixaram de murmurar nos canteiros, escutava-se a bica da água na piscina e um risinho de corvo sobre as faias, o lobo da Alsácia, a gemer, arrepanhava-me a saia, eu enxotando o animal com o pé

- Quieto Adamastor

e uma vozinha sufocada de lágrimas lá em baixo, pendurando-se-me na roupa

- Não é o Adamastor Titina sou eu de modo que lhe peguei ao colo, procurei um joelho esfolado que era o que sucedia a cada passo, tropeçar nos cubos dos guarda-sóis, bater numa estátua, magoar-se na pedra dos canteiros, separei-lhe a franja com medo de ver sangue

- O menino caiu?

e nem feridas, nem sangue, nem arranhões, nem um nódoa de lama sequer, só um dedo apontado, o nariz no meu pescoço, um estremeção de lágrimas

- A mãe o pai a mãe o pai (...)

(do Manual dos Inquisidores)

XXX

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