Fantasmas

por Dante Sasso

"— Como vai você aí, vizinho?
— Oh! em excelente estado de putrefação."
(Quintana, em "Conversa de cemitério")

Era um tio meu que segurava com força minha genitália quando chegávamos em
sua fazenda no interior, onde havia uma casa enorme junto a um galpão
antigo de madeira e um rio onde eu costumava banhar-me à noite em suas
águas desde pequeno. Era muito perto da casa, o rio, e eu me acostumei a
desvendar cada detalhe do terreno às suas margens especialmente nas
madrugadas de verão de minha infância. Quanto ao meu tio, fazia a
brincadeira de apertar meu saco porque era um conquistador barato
incorrigível que só pensava em sexo e que havia tomado tiros não apenas de
um mas de muitos maridos traídos, e escapara com vida. Sua família — minha
tia e duas primas — ao contrário, haviam morrido em um acidente de
automóvel durante férias na capital quando eu ainda era uma criança. Depois
de algum tempo, após meu pai morrer na Guerra das Malvinas — ele era
argentino, como meu tio, e minha mãe morrera quando nasci — fui morar nessa
cidade serrana com o irmão de meu pai e viver coisas muito estranhas.

Eu tinha treze anos quando ele buscou-me na rodoviária dizendo que eu
ficaria em um quarto enorme com mais de uma cama pois ele era colecionador
desse móvel — o que eu até então desconhecia. Na rodoviária, meu tio
galante abordou a moça que por coincidência havia viajado ao meu lado e
pediu-lhe seu endereço naquela cidade. Era foda, meu tio. No seu quarto
havia três camas de ferro e uma de madeira de carvalho feita no século
XVIII, a preferida dele; as de ferro pareciam mesmo menos importantes do
que aquele verdadeiro berço gigante feito de madeira negra e lustrosa onde
ele dormia. No meu quarto havia duas camas; e meu tio desviou do caminho
para sua casa a fim de visitar um senhor seu amigo que queria vender um
cama antiga de marfim que seria posta no quarto onde eu passaria a dormir.
Notei uma aparência desconfortável naquela cama, mas eu ainda não tinha
visto nada. Quando ele a trouxe para casa, alguns dias após a minha
chegada, uma força estranha tomou conta de mim e me fez querer dormir nela.
Entre calafrios e suores ardentes e gelados eu pedi.

- Está bem, eu ia colocá-la no teu quarto mesmo, guri - disse meu tio,
preocupado com minha aparência doentia e fantasmagórica — ele veria isso,
mais tarde.

No galpão da fazenda estava a maior parte de sua coleção: vinte e sete
camas montadas e arrumadas, lençóis, fronhas, travesseiros e colchas
coloridas, além de algumas outras desmontadas e guardadas no segundo andar.

Dormi dois dias ininterruptamente na cama de marfim, assustando meu tio,
mas acordei bem melhor do que na noite em que aquela esquisita sensação
apoderou-se de mim, deixando-me em um estado febril e nauseante. Ao
acordar, tinha meu corpo cansado, e teria tido a nítida sensação de ter
transado durante todo meu sono se isso já tivesse acontecido comigo, mas eu
ainda era virgem. E, apesar do cansaço, estava disposto e feliz. Eu não
sabia, mas aqueles dois dias marcaram minha primeira relação sexual.

Alguns anos mais tarde, quando eu já havia me tornado um rapaz mais
robusto, fazendo as lidas do campo e trabalhando nas cocheiras, e também
comendo as menininhas que eu conhecia nos bailes daquela cidade interiorana
onde eu ia tocar acordeona com meu tio e os peões da fazenda, comecei a
cultivar um estranho hábito, talvez mesmo um vício, tão forte era meu
desejo de fazê-lo. Costumava matar uma das ovelhas do rebanho da fazenda,
escondido, é claro, e comê-la, crua, além da margem do rio, nos limites das
terras da fazenda. Eu a matava, um golpe de faca certeiro no pescoço,
sangue farto escorrendo pela pelagem branca, a colocava no lombo do meu
cavalo e ia até a floresta para provar sua carne fresca. Houve semanas em
que matei uma por dia. O que restava, apesar de geralmente não restar muita
coisa além dos ossos, eu jogava no rio, depois das cercas da fazenda, nas
terras de um vizinho que tinha atritos e dívidas com meu tio, o que
reforçava a inocência de qualquer outra pessoa em relação ao roubo dos
animais. Muitas vezes encontrei peões que trabalhavam eventualmente com meu
tio no caminho, mas então eu escondia o animal na floresta e desculpava-me.

— Estou indo além das terras do tio, parece que viram uma fogueira por lá
na noite passada. Quero pegar o ladrão dos bichos — eu dizia, mostrando a
arma. Chegava a convidá-los, mas faziam corpo mole e rumavam para o bolicho
que ficava na estrada de acesso à fazenda.

No começo eu não bebia o sangue dos animais, sentia apenas uma vontade
imensa de cortar sua carne com minha faca afiada e mastigá-la, cheguei a
achar que era o efeito retardado de alguns cogumelos que eu havia tomado
uma vez com uma menina depois de um baile no centro da cidade, já me
disseram que essas drogas que as plantas possuem ficam no corpo e no
cérebro para sempre, em uma espécie de alucinação, mas eu fazia aquilo de
forma consciente, havia um método e também um prazer tão especial em fazer
aquilo que para mim tudo parecia normal.

Comecei a beber o sangue das ovelhas por insistência do fantasma, ou
melhor, da fantasma que dormia comigo.

No meu quarto, segundo a fantasma, já haviam morado quatro fantasmas de uma
só vez. Dois casais, cada um dormindo em uma cama. Os outros três fantasmas
haviam ido embora logo antes de eu chegar, e ela passou a dormir em outra
cama pois detestava a sua, ela lhe trazia péssimas recordações, uma
história muito comprida que ela me contou entre soluços de cor e fúria,
lamentos nervosos, sinceros e bonitos. Depois de nos conhecermos melhor ela
confessou-me que só por isso não tentou conversar comigo, eu não a
atrapalhava enquanto dormia. Nunca perguntei se seu companheiro fantasma a
havia abandonado, achei uma pergunta ridícula demais para se fazer a um
fantasma, ainda mais um fantasma mulher, que eu nem sabia que podia
existir, para mim os fantasmas, primeiro, não existiam, segundo, não podiam
ter sexo, terceiro, não transavam, quarto, não transavam tão gostoso como
ela, e eu era um rapaz educado e não iria tocar em um assunto tão íntimo a
respeito de uma mulher, ou ex-mulher, sei lá. Quando chegou a cama de
marfim e ela quis ocupá-la, depois de apreciá-la por alguns dias, os pés
firmes e bem torneados, o estrado que pendia entre as vigas fortes daquele
material branco e bonito, atacou-me e fez-me adoecer; mas vendo que eu
tinha sonhos bons e desconhecia sua presença, abusou de mim. Quando ela
revelou-me isso, depois de já termos matado juntos algumas ovelhas, e de
sermos um tanto cúmplices um do outro, transamos pela segunda vez. Era
maravilhoso transar com ela, bem diferente das meninas da cidade que eu
comia no meio dos bailes, entre uma música e outra atrás do galpão, meninas
essas que ela não se importava se eu as trouxesse para nosso quarto desde
que não dormíssemos em nossa cama de marfim.

Acho que meu tio nunca soube da existência da fantasma, pelo menos nunca
comentou nada comigo, mas estava começando a se preocupar com o
desaparecimento das ovelhas da propriedade. Se estavam roubando suas
ovelhas, ou matando-as, bem poderiam entrar em sua casa e roubá-lo e
matá-lo, já que parecia tão fácil fazer o mesmo com seus animais. Quando
perguntei à fantasma se não deveríamos parar com aqueles banquetes com as
ovelhas, ela olhou-me sério com seus olhos vazados e fez-me uma pergunta
com uma voz fria como eu nunca a tinha ouvido falar.

— Você nunca experimentou beber o sangue das pobrezinhas?

Não, eu nunca havia experimentado beber o sangue delas.

Eu as cortava e as pendurava pelas patas traseiras em uma árvore e deixava
escorrer todo o sangue para então começar a comê-las. O sangue tinha, para
mim, um cheiro forte e desagradável.

Passei a experimentar a pedido dela. No começo aquilo me deixava enjoado,
como se eu tivesse comido algo muitíssimo salgado, ou tomado uma bebida com
muito álcool. Mas o gosto era forte e de uma doçura dopante. Depois eu
comecei a saborear a consistência um tanto cremosa daquela matéria, que era
quente, aquecia como um brodo de carne feito em fogo de chão. Passávamos
muito tempo em torno do fogo, ela dançando as mais tenebrosas milongas que
eu jamais havia tocado para menina alguma, e parecia um véu que esvoaçava
por entre as notas que saíam do instrumento, que acompanhava uma suave
percussão que parecia vir do meio escuro e intenso do vento das árvores,
comendo os restos completos da ovelha, bebendo seu sangue, chupando meus
dedos quase a noite inteira e transando de um jeito tão fantástico e
difícil de explicar, e talvez difícil até mesmo de sentir. Eu nunca a vi
enquanto estávamos transando, era seu único pedido, e então eu permanecia
de olhos absolutamente fechados, mas sentia o cheiro, a pele, os cabelos em
volta do meu peito, sua respiração ofegante, e ouvia seus gritos,
cavalgava, apertava seu corpo, tinha um orgasmo demorado e vigoroso, me
derramava sobre ela.

Numa noite, após cumprir aquele ritual que já se tornava macabro, mas que
para nós tinha muito de paixão, e nada de errado além de matar as ovelhas —
mas eu as matava para assar aos domingos com meu tio e os peões da fazenda
da mesma forma — pois numa noite fomos encontrados pelo meu tio, ou melhor,
eu fui encontrado, acho que ele não a viu, ou não conseguiria ver, na
verdade ele não distinguiu nem mesmo seu sobrinho no meio dos arbustos e
das tripas do animal que eu agora abria do pescoço ao rabo com a faca, no
chão, entre minhas pernas, sujando todo meu corpo de sangue.

Levei cinco tiros, todos no ombro esquerdo.

Meu tio não tirou os olhos de mim.

Eu me pus em pé, mexi no ombro sangrando e olhei para o lado.

A fantasma me olhava com espantosa alegria.

Súbito pegou minha mão e saímos juntos correndo. Eu já havia transado,
conversado e bebido o sangue de várias ovelhas com ela. Mas eu nunca havia
pego em sua mão, nunca a havia tocado com os olhos abertos. Corremos muito,
mas só os cavalos do meu tio e do capataz notaram. Meu tio continuava
olhando firme para o chão, onde meu corpo tremia.

— É o sistema nervoso, ela disse.

Tentei olhar para meus pés enquanto corria e só então não me vi.

Ela, ao contrário, não parecia mais um manto que apenas me envolvia, uma
luz que brotasse da noite. Parecia feita de nuvem, de névoa, de orvalho. Eu
a tocava e sentia a umidade de um corpo fresco, de uma flor recém aberta.
Terna, mas física.

Chegamos ao galpão e só o seu permanente sorriso me explicou o que havia
acontecido. Não perguntei nada. Ao longe, via a fumaça da fogueira que
havíamos feito para ela dançar em volta e para me aquecer naquela fria
noite de inverno. Nesse instante ouvi um guará uivando no mesmo compasso
das milongas que enchiam as noites na floresta. Quis dizer algo, mas não
consegui. Não sabia nem se poderia ainda falar.

— Pode, ela disse, sem eu saber como ela descobrira o que eu havia pensado
— mas não precisa, e uma espécie de pensamento entrou dentro de mim, não do
cérebro, pois eu já não o possuía, as sensações à minha volta agora
pareciam trespassar-me como um fluxo de ondas ou de energia, demorei a
descobrir. Deitamos em uma das inúmeras camas do galpão e adormecemos.

Vivi, ou melhor, passei pouco tempo com a fantasma após morrer. Era
necessário apegar-se a alguma pessoa viva para poder continuar junto deles,
dos vivos. Claro que não choramos quando ela foi embora, mas consegui tocar
uma última milonga triste e arrastada na acordeona, como ela gostava, o que
a deixou muito bonita e luminosa, como quando deitávamos sobre a terra
encharcada pelo sangue dos animais, e essa imagem veio de repente e me
deixou muito, muito feliz, e nossa despedida foi um desperdício, pois
ninguém viu a imagem mais linda que já senti em minha vida e minha morte, o
seu rosto indo embora, o seu todo evaporando-se para aparecer ou o quer que
seja em algum outro lugar.

Meu tio enterrou-me no exato local onde levei os tiros. Rondando a casa
após minha morte, descobri que ele havia ficado em estado de choque por ter
me matado acidentalmente, e que ia agora todos os dias ao local para
levar-me flores. Eu não gostava das rosas vermelhas que ele punha na minha
sepultura, na verdade nunca gostei de rosas, preferia flores mais simples,
como aquelas pequeninas flores silvestres, por exemplo, mas gostava do seu
gesto, meu tio sempre gostou muito de mim. Ele também havia se tornado um
homem muito religioso, comparecia à missa agora todo fim-de-semana na
capela que ficava a apenas dois quilômetros da fazenda, e eu o seguia até
lá, e sentia uma leveza e um conforto a me atravessar nos domingos pela
manhã, quando o procurava no meio da gente que saía silenciosa da missa e o
descobria conversando com o pastor, que tinha um sorriso simpático e um
olhar benevolente.

Meu tio, após alguns anos, transformou sua casa, o galpão e todas aquelas
camas em um enorme e bonito hotel-fazenda. Tornou-se um velhinho querido e
bondoso, mas morreu poucos dias depois da inauguração do seu hotel. Nunca
quis aproximar-me dele, achei que não seria nada confortável para ele se
soubesse que eu permaneceria na casa até sua morte, e depois. E também não
senti ódio algum por ele, por ter me tirado a vida, pois eu permanecia,
mesmo quando vivo, muito mais em contato com este lado do que com o outro.
Não o encontrei após morrer, creio que ele tenha ido diretamente para o céu
ou para algum outro lugar, essa é uma dúvida que só me será revelada após
muito e muito tempo.

Hoje eu tomo conta de sua casa e de suas camas, agora utilizadas por
visitantes de vários lugares, apesar do capataz estar convicto de ser o
dono do hotel, das terras e do rebanho que haviam sido do meu tio.

E a cada ano o hotel recebe mais e mais hóspedes, todos atraídos pelo
interesse na lenda do fantasma que, segundo alguns, atrai virgens
belíssimas para a escuridão da floresta que fica nas terras de meu tio,
entre as árvores que dobram-se ao som de uma acordeona suave, entre um
gemido e outro de uma ovelha ainda muito branca e saborosa.

XXX

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