Um Baú de emoções
por Ariela Boaventura
 
 
Fotos, alguma letra de música; poemas manchados por substâncias etílicas, círculos e semi-círculos de fundos de copos vão tomando conta da memória... Algo bicho-grilo, coisa pós-Woodstock, até Marx aprovaria, o comuna em melenas cor de nuvem-gris, barbão xexelento, velhas calças de brincoringa, ui!, que coisa mais retrô, pés em chinelo-de-dedo, sandália de couro ou até descalços; o importante era tudo ficar solto, cuecas nem pensar. Liberdade, a tal da idéia abraçava ainda ingredientes queimando verdes, anos de chumbo, céu de paulos coelhos pobres e fecundos, época dos sem-camisinha. Jimmys cabeludos fogoiós e pretos, sexo antes da guitarra e sempre, pregadores da paz e da flor, tua mãe dizia que alguém juca era pedro-bó e o roberto malucarlos cantava curvas estradas e infernos, até filme fazia.

Beleza de maluco era então o Raulzito mais os panteras gravando discos-voadores, al-capone e mosca na sopa, ô! Olha só, aqui, nós: magrinhos, sebentos e felizes; cabelos não serviam para ser cultivados só na cabeça (onde havia imagens supercoloridas, em sete dimensões, ao mesmo tempo e além-mundo), mas debaixo dos sovacos e nas pernas alhures, cabelo erva cabelo sem frescura cabelo como extensão do cérebro, aparelho projetor de tudo.

Ele ainda não tinha entrado numa de horror. Foi lá pelos anos setenta, o Raul me contou: ele era a luz das estrelas e a cor do luar. Chegou meio ziguezague, óculos ray-ban, calça pantalona cor-de-rosa, peito nu e correntão com medalha (havia um lagarto desenhado, vai entender), e essa corrente, veja só, descia até o estômago, afogada em pêlos. E ele explicou, enquanto comia um peixinho frito, que tava arrumando um som porreta, algo que ia estourar feito peido de ressaca. É, e eu perguntei, pô, então conta aí, mano, que agora eu tô curioso. Era uma incitação ao amor livre, sem posse nem frescura, a cura das amarguras, aspas seriam dali em diante usadas apenas em textos.

Daí o Raul cantou um pedaço: "Se eu te amo e tu me amas/ e outro vem quando tu chamas/ como poderei te condenar?/ O que é que eu quero se eu te privo/ do que eu mais venero/ que é a beleza de deitar?"

Pô, maneiro, Raul, eu disse, mas eu tinha certeza de que ele tava era meio cascudo com a mulher dele. Depois disso, me mudei da Bahia, e não pude mais falar com o Raul. Uma lástima, porque eu mais o Paulo e turma lá da Casa da Banha tínhamos a idéia de escrever um manifesto alternativo, no qual teríamos como principal libelo as roupas, os caretas e as caretas moganguentas que os caretas faziam só porque não usávamos desodorante.

Daí, fiquei sabendo o pior: a mulher e ele quebraram os pratos, a coleção do Pink Floyd e nem a guitarra do Raul escapou da ira da fulana. Pois é, amor é foda, é maçã perdida no paraíso utópico dos sonhos social-melenentos. Até hoje, desconfio que o pomo da questão, o objeto do litígio entre o Raul e a mulher, foi o Paulo, aquele bruxo danado. Cantar, nunca cantou, é verdade, mas sabia vender o seu peixe mais rápido que uma trupe de coelhos.

E, depois de tudo, lá pela década de oitenta, o coitado do Raul ainda teve que agüentar aquela do Roberto, que já tava meio tantã. Dizque o Roberto ficou impressionado durante muito, muito tempo com aquela música em que o Raul relata o dia em que a Terra parou. Ficou tão obcecado com a idéia que jurou não gravar mais nenhum disco sem resolver essa catástrofe iminente. E, como confundia realidade com sonho, certo dia saiu com esta:

Estávamos tomando um chope no Tio Neco, lá perto do Canecão, onde ele havia feito show. Bebia água mineral, sem gás, sem limão e sem gelo, sempre com a mão direita, pois dizia que a esquerda era a mão dos impuros. Ainda bem que eu não sou canhoto, senão tinha dado um bofete no nariz dele ali mesmo. Bom, então, o Roberto contou essa, de que ele tinha ficado muito impressionado com aquela música do Raul. E, embora não fossem lá muito amigos, cevava muito carinho pelo baiano. Disse: "Esse rapaz sempre me passou uma energia boa, acho que é um profeta, sabem?" E contou que havia sonhado com a solução para o caso de um dia a Terra parar (como acontecera com o Raul, só que sem a parte do ácido).

"Foi num sonho que Ele me falou."

"Quem?", cutuquei.

"O menino. Uma luz em forma de menino, gente, hehehehehehehe. É, e ele me ensinou uma canção, uma canção que salvará a humanidade."

"Canta aí, Beto!", o Moa pediu, meio rindo.

"Hehehehehehe. Tá bom, tá bom. É assim: la laralara la la/ la lara la lara/ la larala la larala la la la/ bis."

Só isso?, perguntei.

Não, explicou o Roberto, "tenho toda a letra já, mas não digo pra ninguém, só depois que gravar, porque pode dar azar."

Revirando o baú do meu amigo hoje foi que recordei esse episódio. É, eu comprei o Baú do Raul, a mulher dele estava meio sem lã. E o Paulo na maior moleza, hoje, traduzido e respeitado. Eu, o Pedro, sempre fui meio distante dessa coisa de fama e tal. Mas, puxa, bicho, tô assim, emocionado, saca? Mas, como o Raulzito me disse um dia, pra onde eu for ele vai, ou ao contrário. Tudo acaba onde começou, é isso? Ah, essa nostalgia ainda vai acabar numa úlcera.

Vai um Jack sem gelo aí?
 
 
Ariela Boaventura
mozarela@hotmail.com  
 

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