Eaux plus fermés
por Ariela Boaventura
 

"Higiene: alimentação à base de pensamentos sinceros e  boas cagadas."

Você lê esta frase logo que entra aqui.

Abri uma loja de ambigüidades.

Não é bem assim, negrinho, ter coragem de meter o peito e oferecer à crítica popular seus pensamentos, alguns embalados em sonhos, outros em conserva e até mesmo aqueles em estado de graça.  Desencaixotá-los, enviar idéias emboloradas ao lixo; expôr as que têm sumo nas prateleiras da sua loja. Não, negrinho, não tenho parentesco algum com o Chapeleiro. Li algumas vezes Alice no País das Cervejinhas, obra póstuma ao clássico de Lewis Caroll, editada no Brasil pré-ano 2000.

Pode-se encontrar cheiro de tudo por aqui, desde formas cult até o mais banana dos sentidos, concebidos por imaginação simples, básica, clean. A Teoria do Peido, retirada de fanzine francês, devidamente traduzida e ilustrada à Belle Èpoque. Umbigos e palavras com sentido distorcido, signos desclichezados: prateleira de cima. Chicletes permanentes: também há, sim.

Por que não haveria de conceber chicletes que jamais perdessem o viço? Estão ali, ó: junto à cortina confeccionada com embalagens de balas Mocinho. Notas musicais, bemóis e sustenidos: na loja há. Pode-se negociar qualquer nota a preço algum, pois arte não tem preço. E aqui é o único local onde é possível encontrar notas musicais em ócio, num estado de ainda, entende?

Ainda, negrinho, é um estado de pré-ser, que não é agora, mas que num pós pode vir a ser. Metafísica existencialista, quem sabe, poderia explicar, mas aqui nesta loja não se admite arte conceitual. Não há legenda, tampouco etiqueta. A obra é sentida e não entendida, esgotada pelo expediente pobre do verbo.
Aqui o tudo é concebível, o nada não passa de uma idéia absurda (já que em tudo há vida e vida é arte e assim por diante). Onde fica? No limbo entre o real e as notícias de jornal. Na verdade, é um espaço onde só se chega através da nudez da épisteme. Um estranho momento em que só o que pode explicar é uma palavra ainda não existente. Há os que chamam este local de odara.

Não, querido, não sei dizer mais que isso desse bando de idéias que num primeiro olhar podem posar de confusas. Mas lembre-se do ambíguo, lembre-se do limbo entre o real e o que se diz que é real. Atente para o vazio dos conceitos, para a empáfia dos teóricos. Recorde de toda a história de luta entre a arte e o museu, entre a aura imposta por supostos e pressupostos que em lugar algum trouxeram luz. A arte está enfastiada, refletindo o tédio em que nossa civilização atolou-se. Então, só o que pode saciar esta sede
de emoção, esta vontade de sentir, é o absurdo. Por isso abri esta loja, que é um pequeno espaço onde resguardo o que ainda não foi sugado, explorado, banalizado, esvaziado, e, depois de usado, cuspido.

Talvez seja neste vácuo sem denominação, e por isso mesmo de difícil acesso, que você possa  compreender a natureza do humano. Humano em demasia, humano em ápice, transbordante de vida como um leite morno servido com mel quente.

A vida é simples e se confunde também; o amor é dúbio e a morte, certa.
 
 
Ariela Boaventura
mozarela@hotmail.com
 
 

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