Eyes wide shut
por Ana Luiza Nascimento
 
 
É impossível desejar o que se tem. Esta é a premissa na qual Stanley Kubrick baseia seu último filme "Eyes wide shut". Na primeira seqüência do filme temos o nu menos gratuíto da história do cinema. Nicole Kidman tira um vestido, de costas para a câmera, ficando apenas com suas sandálias de salto alto. Tom Cruise, seu marido dentro e fora do filme, responde desatento quando ela lhe pergunta se seu vestido e cabelo estão bem. Kidman observa que ele sequer a olhou ao dar sua opinião. Ele sorri e diz que é desnessário, ela é sempre bonita.

Este não é um filme moral. É um estudo da condição humana onde o certo e o errado convivem e se misturam em várias gradações de cinza. O desejo confesso de Kidman por um homem ocasional e desconhecido, perdido já no passado, com o qual trocou apenas um olhar, desencadeia em Cruise um ciúme tardio e inútil. Ele é o Dr. Bill Harford, o protótipo do homem de sucesso americano, um médico financeiramente bem sucedido, vivendo no seu apartamento novaiorquino de 3 milhões de dólares, no Central Park West. É bonito, sexy, charmoso, casado há nove anos com uma mulher de iguais atributos, com uma filha de sete anos, inteligente e bonita. Mais que o sonho americano, este é o final de todos os contos de fada, onde todos vivem felizes, bonitos e saudáveis para sempre. A realidade do conto de fadas é mais complicada. Por definição, o casamento exige posse e exclusividade de ambas as partes. Sacramentada a posse, o que acontece com o desejo, já que é um paradoxo desejar o que se possui?

É interessante que, nessa época de pós-feminismo e independência da mulher, Kubrick tenha decidido que o personagem de Kidman, Alice, seja uma curadora de galeria de arte desempregada. O livro, "Traumnovelle", no qual o filme é baseado, foi escrito em 1929, época em que as mulheres tinham como profissão o casamento e a economia mundial se caracterizava pela falta de emprego. O importante é que Alice não é uma mulher independente para seguir seus desejos impunemente. Esta é uma condição partilhada através dos séculos pelas mulheres. Alice, neste final de século XX, foi libertada pela pílula e colocada em terreno duvidoso em relação ao patriarcado pelos testes de paternidade via DNA, mas continua socialmente dependente de seu marido. Tal como outra heroína literária do final do século passado, Anna Karenina, que também inspirou vários diretores de cinema.

O romance de Tolstoi também estuda o desejo, embora tenha passado para a história como uma advertência para as mulheres sobre os riscos de ceder aos seus impulsos éroticos e amorosos contra a ordem estabelecida. É através de Vronsky, objeto da paixão de Anna Karenina, que Tolstoy desenvolve o tema do desejo. Vronsky persegue Karenina até conseguir tirá-la de seu marido e de seu filho. Embora ele também pague o preço do escárnio social exilando-se na Itália com Karenina, é Vronsky que insiste em voltar para Moscou, porque a vida na Itália o aborrece. Na volta, Karenina se torna uma reclusa já que ninguém a recebe socialmente. Vronsky é recebido e considerado um homem livre. Karenina se torna para ele um constrangimento e outras mulheres passam a ser o objeto de suas atenções. Com o suícidio de Karenina, Vronsky volta a desejá-la, em meio ao seu sentimento de culpa. Só se deseja o que ainda não se tem ou o que já se perdeu.

O que torna o desejo de Alice tão assustador quanto o de Karenina é sua total falta de controle sobre ele. É arrebatador, sem nenhuma explicação racional ou moral. Ela mesma diz que nada importaria, nem mesmo sua filha. Ou sua própria vida, já que seu atual status social depende do marido. Na experiência de Alice, o autor do livro, Arthur Schnitzler, e Kubrick relatam a misteriosa natureza do desejo. O Dr. Harford se entrega à procura desse desejo, que uma vez procurado pode se tornar elusivo. Nem a prostituta nem a orgia se equiparam à experiência de Alice. Mesmo assim, a procura do desejo pode levar à destruição do estabelecido e seguro de uma forma mais radical que o desejo experimentado.

As seqüências do filme nas quais Dr. Harford persegue seus demônios são as mais controvertidas do filme. Alguns críticos americanos as consideram mal filmadas, as ruas novaiorquinas recriadas em Londres falsas, a luz horrenda e a orgia rídicula (até mesmo porque partes sexuais foram digitalizadas para não ofender o pudor americano). Fosse outro o diretor, talvez até tivessem um bom argumento. Sendo Kubrick, é difícil imaginar que a cinematografia tenha sido relapsa. No livro nunca fica claro se estas cenas são reais ou fantasias do personagem. A solução de Kubrick foi colocar tudo no real, com um acabamento irreal. Existe sem dúvida algo falso sobre as ruas de Nova Iorque, algo incômodo, como nos sonhos, quando estamos em algum lugar que não conhecemos mas que no entanto sabemos ser a cidade onde vivemos. Algumas situações são quase impossíveis, como a procura por uma máscara para um baile à fantasia às duas da manhã. Quase, mas talvez possível. Ou não? Uma sutileza extremamente irritante para americanos, que gostam de saber exatamente onde pisam.

O obscuro objeto do desejo já foi igualmente explorado por outro diretor, o espanhol Luís Buñuel e pelo próprio Kubrick em "Lolita", baseado no livro de Vladimir Nabokov. Enquanto o filme de Buñuel estuda o desejo sem vinculações de relacionamento, os de Kubrick examinam a complexa relação entre desejo, amor e obssessão sempre em termos de relações sociais estabelecidas. Em "Eyes wide shut", ele explora a curiosa relação entre desejo e sexo. Pode-se solicitar e obter sexo num casamento ou numa orgia, mas não desejo.

Kubrick evita cuidadosamente o que Tolstoi explora: as conseqüências socias e particulares da traição. Embora Alice confesse que abandonaria tudo pelo homem que sequer chegou a conhecer, sua fantasia nunca se torna realidade, ao contrário de Karenina. O Dr. Harford tem suas convicções abaladas por uma fantasia e não por um fato. Seu abalo é que a fantasia poderia ter se tornado realidade. A possibilidade de uma dia se tornar real passa a existir na sua consciência.

Para Kubrick, como para todo autor, é mais fácil representar o desejo do que o amor. Embora outro diretor, Polansky, tenha dito que no amor estão as sementes da tragédia, estórias de amor sem tragédias nunca se revelaram um bom material para literatura ou para o cinema. Como escreveu Balzac em "Splendeurs et misères des courtisanes", não há nada a dizer sobre a felicidade. Ainda que pouco mencionado durante o filme, este é um estudo do amor no casamento apesar do paradoxo do desejo. As mulheres dirão que a resolução encontrada para este casal é masculina, ainda que colocada por Kubrick na boca de Kidman. Mas sexo sempre foi a intersecção aonde desejo e amor se encontram, confundem e às vezes, permanecem.

O título é um trocadilho de "eyes wide open" e que em inglês pode ser elusivo. Mas este é um trocadilho que, pasmem, funciona maravilhosamente bem em português. Eyes wide shut só pode ser traduzido como "olhos bem fechados". E como bem diz Kidman ao final do filme: agora estamos bem acordados.

 

Ana Luiza Nascimento, de Nova York
analuiza@compuserve.com
 
 

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