Bsilar, o país impossível

de Ariela Boaventura

"Já a ninguém importam os fatos. São meros pontos de partida para a invenção e o raciocínio."(Jorge Luis Borges)

Um dia a lâmpada queima. As coisas deste mundo fenomenal incham: a doença se manifesta de um momento para outro, alimentada como um animal de estimação durante anos; aquela briga acontece, tantos sapos e amarguras engolidos; o ralo da pia entope, a caixa de gordura estoura.

Um dia, morremos.Mas câncer algum ou o que quer que pertença ao mundo vivo acontece assim, sem um germe que parasita, inchando ao longo do tempo.

Na história não é diferente.Aconteceu que a imprensa simplesmente passou a ignorar o governo. Nem uma linha, por tempo indeterminado. Releases chegavam, como todos os dias, em dezenas de milhares em rádios, TV, jornais. Assessores de imprensa não tinham o que fazer, muitos chefes de Redação enfartaram. Repórteres aproveitaram esta chance, ao menos uma vez na vida, depois do Romantismo do Prelo do início do século: abastecer o noticiário com alguma coisa que não fosse governo ou economia.

Cultura: cartoon, shows, cinema, literatura; as únicas cartolas permanentes então eram Geral e Polícia – caso houvesse casos para.O governo não se fez de sonso: ela é seu único palco, holofote e microfone — a imprensa, sua musa fiel. A provedora e dócil escrava, essa legítima scherazade midiática, o que puser na boca da sua musa contadora de histórias, ela conta. Como poderia sobreviver o governo, essa entidade sem corpo, com um nome genérico e sustentado, mais que pelo voto, sem o apoio desta então rebelde, essa cadela passiva e raramente metida?

Pois pelo menos houve cheiro de que aconteceria alguma coisa, em meio àquela pasmaceira absurda em que Bsilar vicejava. Um local vasto, lindo, repleto de toda maravilha, da botânica ao canto do quero-quero. De fato, Bsilar era uma terra que tinha tudo para ser o Paraíso, caso esse existisse. Ao contrário, estava o país e sua gente atolado na lama, o povo em desgraça econômica, moral e social. Era o caos. Daí, o tumor começou a dar sinais de exaustão, e veio a furo.Em questão de pouco tempo, arrisco dizer, em coisa de pouco mais de dia, redações incharam de papel, e o governo, de indignação. Sim, pois é a imprensa quem dá voz aos atos do governo, aos seus pacotes, pronunciamentos oficiais, inaugurações, planos econômicos, discursos de posse: é ela quem lhe dá tamanho, projeção imagem — em outras palavras, é a imprensa que dá existência ao que é "importante", como o governo, e a tudo o que "acontece".Certamente (ora, melões), aqui não está escrito que é a imprensa que forma o mundo. Pode deformar, mas as coisas estão aí, é só abrir os olhos. Porém, são as coisas sacralizadas, oficialescas, a aura dos signos do poder, a seriedade do estabelecido como ordem é que são algumas das ações providas e promovidas pela scherazade linguaruda.Mas, o que aconteceu, então? Governo estupefato, assessores foram tabefeados, todo o pelotão de guardas da "democracia" em suspenso, o primeiro ato foi...Pegar o telefone e ligar – papel do assessor, que a esta altura era capaz de tirar toda a roupa para a chefia passar por cima. Telefone, esse aparelho que, entre linha e outra, tráfico verbal persuasivo e todo o mais que se possa imaginar em retórica, sempre funciona. Só que, desta vez, aconteceu diferente.

Sem chances: por mais fantástico que possa hoje parecer, as equipes de todas as redações se uniram, editores simplesmente sumiram, ninguém foi capaz de permutar nem um cartão VIP permanente para o Clube Med ou qualquer jabá oferecido pela liberação da pauta.

O jeito foi, antes da ignorância, apelar para a lei. A magnífica e honrada lei, a qual qualquer melão sabe que se escreve em caixa alta inicial, o que aqui se omite por motivos nem tão óbvios assim.Como o governo pode ocupar espaço gratuito na mídia, eis a saída para o impasse. Primeiro, sucederam-se as explicações aos leitores e ouvintes e telespectadores:

— Caros cidadãos. Tivemos que recorrer à lei para que pudéssemos, como autoridade máxima da nação, poder ser ouvidos por vocês. O que ocorre atualmente é um [adjetivo], pois a imprensa de todo o país parece haver parado. O país não melhorou um [adjetivo] com esta atitude [advérbio de modo mais adjetivo], [adjetivo] e [adjetivo]. A nação está sendo prejudicada e o governo, na pessoa do seu presidente da república, eleito democraticamente por sufrágio universal, faz aqui, neste espaço que foi garantido pela nossa [o nome da coisa, em caixa alta, evidente], um apelo. Viemos, em nome do país, em nome da democracia, em nome de toda a nação, lhes implorar para que não dêem crédito a nada do que possa estar sendo veiculado na imprensa. Isso é uma ação blablablá [adjetivo] etc.

Depois do pronunciamento, tudo foi novamente ignorado. Como se não tivesse acontecido bulhufas.O presidente voltou à mídia no outro dia, em horário garantido pela lei etc. e tudo se repetiu.A nação começou a despertar do torpor de séculos. Algo acontecia, finalmente, e vinha de alguma parte não-palpável; exalava pelas ruas, pelos bares, no céu. Essa coisa, parecendo mais um ser vivo invisível, contudo, foi o suficiente para mexer com as entranhas amorfas da população. Da burguesia ao mulambo, da velhinha hipnotizada pela rotina até aos afetados pela fama: o povo se uniu, atirou-se às ruas, para a frente das prefeituras, palácios, ministérios, praças por todo o lugar por todo o Bsilar. Queria o povo uma explicação. Grupos organizados e ONG's fizeram manifestações na frente de veículos da mídia. Carros da imprensa eram apedrejados por alguns mais revoltados. Seqüestradores entraram imediatamente em ação, a tropa de choque também. Guerra civil declarada. Sangue pelas ruas, crianças berravam, desoladas; mulheres, primeiro choraram e escabelaram-se e, depois, como de qualquer maneira começavam a perder os maridos, partiram para a briga — sem batom mesmo.Isso durou muito tempo. Sim, tempo demais. As crianças que antes choravam [as que sobreviveram], prosseguiram na luta por dezenas de anos. Alguns criaram em campo de batalha seus filhos. O espólio desta guerra sangrenta e desgraçada foi a fome, a morte e a violência. Mas restaram preservadas a honra desse povo, que impôs finalmente sua voz. A lei, que em tempos de "democracia" e "paz" em Bsilar fora pisoteada, ignorada, usada e outros adas, foi içada à defesa. Necessitava ser renovada, reformulada, endireitada em suas arestas, criadas para servir à minoria.Quanto à cúpula do poder bsilarense, nem deus pôde salvar e guardar-lhe de seu fim . Para informar o paradeiro de seus integrantes, ninguém, quanto mais a imprensa, essa cadela antes servil, que então passou a prestar para alguma coisa que não ser apenas um álbum de fotos e relatos escolhidos, pautados pelo espartilho do lead.