Conto

de André Czarnobai (Cardoso)

Foi então que as coisas começaram a andar bem, finalmente.

As coisas não andavam nada bem naquele começo de primavera. Bom, começo nada, ainda faltava mais de um mês para que o inverno finalmente desse trégua e fosse para um outro hemisfério, mas o fato é que o calor já ia acariciando a cidade com dias quentes e noites mornas. As árvores ficavam mais verdes e o cheiro de flores assaltava as pessoas em cada esquina. Um cheiro suave, doce, quase terno.Um dos cheiros de infância, como asfalto molhado de chuva.

Mas não é importante agora nada disso.Especialmente porque os valores estão todos invertidos na sua vida agora, simplesmente tudo em que Flávio acreditava ruíra por causa de uma conversa. Uma conversa com voz embargada, sem vinho nem cigarros. Uma conversa longa, pesada, uma conversa sem palavras. Numa dessas noites mornas de final de inverno.

As coisas não andavam nada bem há algum tempo, já. Flávio entregava sua alma em uma bandeja para uma esperança morta. Esperanza tinha os olhos de mel das espanholas. Espanholas precisam ter lábios de mel e olhos de abelha, dizia um amigo bêbado. Flávio encontrara a única com olhos de mel e lábios de abelha, que eram capazes de levá-lo ao céu e ao inferno em questão de dias, às vezes, horas. Mas Flávio acreditava nela. Sabia que alívio para sua alma ferida só encontraria nos olhos da mulher amada, quem quer que fosse essa mulher. Uma alma feminina que soubesse compartilhar do seu carinho, do toque de seus dedos e do gosto de sua boca. Encontrara. E ela disse-lhe adeus.

As coisas não andavam nada bem desde o dia em que ele decidiu beber vinho barato para esquecer das suas dores. Como se o vinho fosse o remédio mais exato para o sofrimento. Flávio sabia que o esforço era em vão agora. Encher um copo pra quê? Sorvia o sangue de milhares de uvas direto do gargalo, cortando algumas vezes a gengiva, misturando com o seu sangue o néctar que bebia. As noites ficavam vazias e fugiam da sua vista e o seu sentimento escorria pelo ralo todas as vezes em que tomava longos banhos pensando no que tinha errado.

As coisas não andavam nada bem nos minutos do relógio, que se negavam a andar mais depressa para que o tempo fizesse o favor de dissolver todas as lembranças de Esperanza em sua alma. Optou por torpor e distrações profanas, optou pelo silêncio e pelo isolamento e pela visão das paredes escuras do quarto.

As coisas não andavam nada bem naquele domingo quente e cansado em que decidiu caminhar pela praça cheia de pessoas. Todas estranhas, tantas pessoas, tantas que nunca tinha visto, muitas que nem sequer imaginava existir. O calor era como uma nova sensação, algo inédito e bizarro mas parecia não vencer o frio que Flávio sentia. Envolveu os braços no corpo e continuou suando. As cores da paisagem resumiam-se a tons de verde. Esperanza, ele pensava. Porque a natureza lhe torturava? Esforçava-se paraesquecê-la, pensava que havia conseguido mas tudo no ambiente parecia fazer a lembrança voltar aos seus olhos. Vinho na cabeça há vários dias, o mesmo vinho reciclado, tontura. Flávio sentou-se e procurou sombra. Olhava os rostos, nenhum conhecido, nada que soubesse, nada de velho, nada.

As coisas não andavam nada bem até que olhou para o lado e seus olhos despejaram atenção na bela morena que sorria, reconhecendo-o também. Flávio sentiu-se aquecido, finalmente. Sentiu-se completo.Soltou os braços. Linda. Cabelos curtos e negros que pendiam até a nuca, adornando uma face do frio,uma expressão de esquimó, um sorriso delicioso. Os olhos pequenos abertos, sorrindo, puxados, negros,profundos. Tudo nela estava perfeito. De abrigo, caminhando no parque, fazendo exercício. Linda. Ela veio em sua direção e sentou-se, desabando lentamente o peso do corpo para suas ancas, pressionando a árvore até atingir o chão. Olhando em seus olhos, sorrindo e passando a língua rosa, pequena e molhada nos lábios, dizendo alô ou qualquer coisa. Coisa essa que Flávio não ouviu, ficou lendo os lábios e tentando advinhar um beijo de surpresa. Flávio sentiu a garganta secar. Dois anos de desejo reprimido apareciam na frente de seus olhos tão apetitosos e oferecidos que pareciam irreais. Parecia esse ser o antídoto para o veneno espanhol e ao mesmo tempo, cura para todos os seus problemas.

As coisas não andavam nada bem para quase ninguém, mas a visão de Linda sorrindo e ouvindo todas as suas palavras com atenção fez renascer em Flávio alguns sentimentos que o confundiram. Linda representava o único fator que o faria esquecer Esperanza, se isso fosse possível. Se existisse alguma coisa capaz de atenuar as lembranças de Esperanza na memória, seria Linda. Sim, atenuar apenas, pois Flávio sabia que nunca seria capaz de apagá-la, de perdê-la por completo em suas recordações. Linda ouviu cada sílaba triste pronunciada por Flávio, deitou-o no seu colo e acariciou seus cabelos enquanto olhava no fundo de seus olhos, compreensiva e quieta.

As coisas não andavam nada bem, e ficaram ainda piores quando Flávio virou seu rosto em direção ao corpo de Linda e o perfume que sentiu embaixo de seus seios foi exatamente o mesmo que encontrava na pele de Esperanza. Os olhos encheram-se de lágrimas logo enxugadas na alva penugem que começava na barriga e descia para dentro das calças. Úmida ainda do suor do exercício, Linda sorriu e convidou Flávio para o almoço. Sonho de adolescente, hormônios gritando, belo convite, pensou. Talvez ela estivesse solteira, talvez seja mesmo esse aquele grande momento pelo qual eu tenho esperado a minha vida toda, talvez seja ela a resposta para as minhas perguntas. Mas talvez é só perhaps.

As coisas não andavam nada bem até que escolheram um restaurante e combinaram de se ligar para irem juntos almoçar. Flávio tomou banho, colocou roupa nova e saiu perfumado, em busca de descanso.Linda foi ao seu encontro, simplesmente. Encontraram-se. Ela estava sorridente como sempre, mais linda que nunca. Talvez fosse a falta do vinho que o fizesse vê-la tão deslumbrante. A felicidade que o vinho causa nos olhos muitas vezes oculta a essência. Talvez fosse a vontade de que tudo desse certo uma vez na vida. Talvez fosse o perfume, que dessa vez era mais abundante e insistia em ser igual ao de Esperanza. Mas, outra vez, talvez é só perhaps.

As coisas não andavam nada bem, todos os seus amigos estavam mudando e as idéias sobre o mundodesmoronavam a cada novo dia desperdiçado chorando por cima de pilhas de poemas que nunca seriam lidos. Flávio percorria com os olhos cada milímetro do corpo de Linda com muito carinho e muita fome, maravilhado com a divindade de cada forma ao mesmo tempo que corroía-lhe uma vontade de morder cada pequeno pedaço de carne. Imaginava o gosto que a carne teria, cor de café com leite bem fraco, um bronzeado discreto na pele macia e rija. O par de pernas mais perfeito que conhecia - Flávio imaginava o gosto doce que cada beijo proporcionaria aos seus lábios descobrindo as coxas de Linda. Imaginava o tamanho dos seus seios, pequeninos, ao seu alcance, pedindo um toque, uma gota de saliva, um fio de barba. Imaginava os sons que a voz de veludo produziria em seus ouvidos a cada movimento de quadris e o gemido quando o gozo chegasse. Imaginava o sorriso em seus lábios quando o gozo chegasse. Imaginava o calor do seu sexo e o seu perfume impregnando suas narinas com o odor acre de pecado quando o gozo chegasse.

As coisas não andavam nada bem na cabeça de Flávio. Ele não conseguira comer direito, os pensamentos chegavam aos montes e cada palavra de Linda parecia ainda mais interesse despertar para a conversa. Flávio utilizou-se de todos os artifícios e ardis dos quais foi capaz de lembrar. Falou baixo, em tom grave, sorrindo levemente, arqueando as sobrancelhas para fora dos óculos, fez com que ela sentisse o seu cheiro várias vezes e lhe desse comida na boca. Flávio então resolveu dar o passo final, perguntando sobre o namorado dela. Ainda existia. Ainda estava com ela, limitando-a, sufocando-a, e o pior - ela gostava disso tudo. Mulher não presta mesmo, pensou. Mas continuou sorrindo e seduzindo, ainda que ela não se deixasse seduzir jamais.

As coisas não andavam nada bem e ficaram somente tristes quando Flávio comprovou que a única mulher no mundo que o faria perder a esperança estava impossibilitada de cumprir o papel - e talvez nem quisesse. Como talvez é só perhaps, levantaram-se e caminharam em direção ao carro, ainda entre risos, ainda sem saber de nada, aidna sabendo de absolutamente tudo, ainda enganando um ao outro. Flávio disfarçando sua decepção; Linda, tentando fazer tudo menos doloroso. Flávio ainda olhou para trás, olhou para os negros assentos das cadeiras reluzindo as luzes do teto. O seu igual ao que sempre foi, negro,liso, lustroso, limpo, frio, inalterado. O de Linda, ostentando uma mancha reluzente. Uma mancha que parecia água, parecia líquido, parecia suor, parecia gozo, parecia tudo e aparecia por debaixo das pernas de Linda.

As coisas não andavam nada bem naqueles dias mornos de final de inverno, até que Linda sorriu com malícia para Flávio. Marota era a palavra que lhe vinha à cabeça. Sorriu maliciosa, secando as pernas com as mãos e falou: "Olha só, tou toda molhada. Que dia quente!". Flávio sorriu ainda mais malicioso,deliciando-se com as coxas úmidas de uma mulher inatingível, ainda assim desejável habitante eterna de seus desejos e somente pensou: "O ar condicionado está desligado".