68 NÃO FOI UMA BARRA

por Jorge Furtado
 
 
 
Os ideais de maio de 68 continuam profundamente vivos em minha memória. Não é sem saudade que me recordo do sentimento de camaradagem que embalava aquele grupo de idealistas, irmanados por uma utopia comum: vencer o riacho Araribóia.

O ponto de reunião do time era a sombra da paineira no quintal da casa de meus tios, na rua Saicã. Lá estavam meus três primos, Jorge Luiz, Paulo e Cláudio, o Nado, o Henrique, o Chiquinho (que se chamava Ernesto), os gêmeos Cláudio e Renato, o Gordo e eu. Entre o quintal e o nosso campo de futebol passava o riacho Araribóia. Para chegarmos ao campo tínhamos que caminhar quase 100 metros até a Camerino, onde o riacho era canalizado, e voltar os mesmos 100 metros pelo outro lado, até o campo. Se houvesse uma maneira de cruzarmos os dois metros do Araribóia ali mesmo, no quintal dos meus primos, estaríamos a um minuto do campo. A reunião foi comandada por Jorge Luiz, o mais velho, com doze anos. Os gêmeos eram os menores, com seis, eu tinha oito. Depois de uma exaustiva análise do terreno, da segurança das margens e da profundidade do riacho (perdemos a primeira vassoura, mas era bem velha) definimos o projeto da grande obra que nos faria cruzar o riacho em um minuto: um túnel.

O primeiro desenho do túnel considerava a possibilidade de cruzá-lo de bicicleta. Começava no meio do quintal com um declive aproximado de 15 graus até atingir a profundidade de três metros, sob o riacho, voltando a se elevar em 15 graus e saindo um pouco atrás da goleira velha. Nosso acesso restrito às ferramentas adequadas - tínhamos colheres de sopa e uma escumadeira - e a dificuldade de cavar sob a paineira nos fizeram optar por um projeto mais simples, capaz de ser executado antes do final de semana. Consistia num buraco vertical de três metros de profundidade, um túnel de dois metros de altura e três metros de comprimento sob o riacho, outro buraco de três metros do outro lado. Em cada buraco haveria uma escada. Alguém sugeriu um estacionamento de bicicletas do lado de cá e a idéia foi aprovada como o primeiro melhoramento a ser feito, depois do túnel pronto. O primeiro dia de escavações não rendeu muito. A escumadeira quebrou e era da mãe do Nado mas quem estava usando era outro, que eu não vou entregar. E os trabalhos foram interrompidos, perdemos mais de duas horas na escolha do nome do túnel. Acabou havendo um empate na votação final entre "Túnel Araribóia" e "Merdão". O segundo nome foi sugerido em função do cheiro do barro cada vez mais preto que saía do buraco. Deixamos para discutir o nome depois que o túnel estivesse pronto.

As perfurações já passavam de régua e meia quando o Gordo lembrou que ninguém tinha pensado na largura do túnel, que o desenho só tinha o comprimento e a fundura. Todos voltaram a consultar o desenho que ficou imundo e ilegível. Decidiu-se esquecer o desenho e que o túnel teria um metro de largura. O Gordo lembrou que o túnel ia ficar escuro e perdeu-se uma hora pensando em maneiras que iluminá-lo. A solução encontrada foi o uso das lâmpadas de natal da mãe do Henrique. O debate com ou sem pisca-pisca tomou o resto da tarde e resolveu-se fazer testes assim que o túnel estivesse pronto.

Os trabalhos recomeçaram na tarde seguinte e avançaram rapidamente. O buraco já estava com quase um metro de profundidade, da altura do bolso da camisa branca do Jorge Luiz, quando perdi um dos meus guides nas escavações. As buscas na lama duraram cerca de dez minutos. Decidimos fazer uma pausa no trabalho e fomos os dez até a cozinha da Tia Lirian que, para nossa surpresa, não nos recebeu com a gentileza habitual.

Voltamos ao quintal para deliberar e tomar água da mangueira quando o Gordo sugeriu a possibilidade de uma ponte. Todos riram muito da idéia idiota do Gordo. Onde nós conseguiríamos madeira para fazer uma ponte? O Gordo reconheceu que a sua idéia era idiota mas que ninguém tinha pensado na largura do túnel, que se não fosse ele falar, e que um metro de largura era pouco e que a gente estava fazendo isso só porque ele quebrou a escumadeira da mãe do Nado. Decidimos que o túnel teria inicialmente um metro de largura e depois seria ampliado para dois metros, ampliação que seria feita antes do estacionamento de bicicletas, assim que o túnel estivesse pronto.

Juro que não lembro de quem foi a sugestão de usarmos a mangueira para acelerar as escavações. Pareceu uma boa idéia, no princípio. A água da mangueira que enchia o buraco tornava a terra mais mole, facilitando nosso trabalho com as colheres mas, a medida que se acumulava, corroía as paredes do túnel e aumentava o buraco para os lados, o que não era nossa intenção inicial. O Gordo reclamou que o barro cada vez fedia mais, que aquilo nem parecia barro, parecia cocô.

A "Ponte do Gordo" foi inaugurada, com festa e uniforme novo do time, alguns meses depois. Não lembro como conseguimos a madeira. Usamos as lâmpadas de natal, sem pisca-pisca, para iluminar o corrimão, que só tinha de um lado. O Gordo reclamou que se tivesse corrimão dos dois lados ele não teria caído no riacho ao levar o choque nas lâmpadas, não teria estragado seu uniforme novo de goleiro nem ganho o apelido de Merdão. Encontrei com ele esses dias, no aeroporto. O Merdão está careca, emagreceu, tem dois filhos, mora em São Paulo e usa perfume. Muito perfume.

 

Jorge Furtado 08/11/99
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