MANIFESTO ANTI-LIQUIGÁS

por Clarah Averbuck

 

Um dia o povo se rebelará contra o lacre azul do cachorrinho. Eu sei. Um dia os cidadãos não mais tolerarão ser acordados pela musiquinha infame e irão às ruas com rolos de massa, panelas e pés-de-cabra lutar por seus direitos. E então a verdade haverá de vir a tona. Ninguém acredita num cachorrinho com mais de quatro patas. Ninguém acredita num maldito cão que cospe fogo. Aquilo é um dragão! Ou um grifo. Mas definitivamente não é um cachorro, quanto mais um cachorrinho. Durante anos os hereges da Liquigás acharam que conseguiriam lobotomizar o povo, fazendo-o crer que aquele animal com seis patas era um cão. De fato, durante um tempo, conseguiram enganar a maioria. Mas não todos e não para sempre.

Bandos de caminhões acossados se reunirão em frente ao mercado público. O som será tão alto que todos os lares do centro e um pedaço da cidade baixa conseguirão ouvir a vinheta "se tem o lacre do azul do cachorrinho... pode confiar... é liquigás" e a paz da província será atingida. Só assim, quando tiverem pisado no calo de todos, é que silenciarão os auto-falantes. Não porque um silêncio tomará conta de tudo, mas porque o ruído da turba enfurecida de porto-alegrenses soará mais alto. Haverá saque e ranger de dentes. Colunas de gás e fogo se erguerão. Peça por peça sumirá e nunca alguém dirá que ali houveram caminhões. Hordas de gaúchos ensandecidos torturarão os funcionários da empresa com velhos sucessos como Kátia, a ceguinha, Jane Duboc, o novo disco da Hebe, Ronaldo Resedá, Harmony Cats, Black Juniors, Tremendo e Dudu França em volumes ensurdecedores. Membros dos mais altos escalões da Liquigás serão castigados sem perdão com sessões de Xuxa e os Trapalhões intercaladas com Cinderela Baiana enquanto não confessarem quem compôs aquela ode ao mau gosto. O compositor dessa música não pode, repito, não pode continuar vivendo em meio a uma civilização onde habitam pessoas com a audição e o senso crítico saudáveis. Conselhos deliberativos serão formados para decidir o destino daquele que destruiu toda uma cultura. Associações de bairro se mobilizarão para encontrar aquele que foi o responsável pelo caos, aquele que será uma ameaça constante ao bom-gosto e ao sono alheios. Encontrado, será preso numa câmara de gás, onde em seus últimos instantes de lucidez, se arrependerá até o último fio de cabelo de ter atentado contra a humanidade daquela maneira injusta. E sorrirá, ironicamente, ao ver o lacre que envolve o tubo de gás.

nota: descobri que o compositor é o Hermes Aquino. Deus tenha piedade de sua alma.

 

Clarah Averbuck
<jazzie@innocent.com>