NÃO à Barbárie! A Independência de Timor Leste*
 

por Gerson Luís Albrecht Anversa**
 
 

No final do século passado, o novo desenvolvimento revolucionário das forças produtivas e o processo de concentração e monopolização dos capitais levaram à corrida das potências capitalistas para Ásia e África como parte do processo de expansão imperialista. As colônias da fase imperialista resultaram da nova forma de expansão industrial das potências capitalistas a partir de uma base interna de acumulação maciça de capital e de tecnologia avançada, criando uma demanda sem precedentes de matérias-primas e mercados.

As colônias portuguesas eram diferentes: eram sobrevivências de feitorias quinhentistas subitamente ampliadas para o interior e com o domínio metropolitano reforçado perante a ameaça de serem anexadas por seus rivais imperialistas. De fato, a partir da Conferência de Berlim de 1895, Portugal empreendeu a conquista dos territórios a ele destinados, antes que fossem absorvidos pelas demais potências. Denominou-se esta expansão colonial reativa de "colonização reflexa". Além disso, as características de Portugal - um país pobre, não industrializado, com uma estrutura política de caráter autoritário e, posteriormente, com traços fascistizantes - conduziram à formação de um sistema colonial sui generis, denominado por Perry Anderson de "ultracolonialismo": simultâneamente, a mais primária e extremista forma de exploração colonialista.

Para Anderson, a ideologia colonial portuguesa contrastava com a realidade, distorcendo-a para além da capacidade de reconhecimento, na forma de uma singular cosmologia delirante. As noções de "província ultramarina" e de uma missão ancestral e espiritual do português de civilizar e cristianizar encobriam a dominação ultracolonial. A emigração como desafogo demográfico na metrópole e a idéia de um "colonialismo missionário", moralmente superior e não exploratório ("não imperialista", em oposição aos demais), encobriam o "atraso" econômico e social de Portugal. Algumas fontes menos avisadas reverberaram a mitologia portuguesa da inexistência de discriminação racial nas colônias. Porém, só a caracterização de "nativos" para os não brancos e as condições exigidas para que estes pudessem ser considerados "assimilados" evidenciavam o racismo oficial .

O processo de descolonização dos impérios europeus no pós-guerra afetou o português a partir da década de 60. Enquanto que as outras metrópoles desfaziam-se de seus impérios coloniais e desenvolviam novas formas de exploração (neocolonialismo), os imperialistas portugueses - incapazes de desenvolverem relações neocoloniais – esforçavam-se para manterem o seu, reprimindo os movimentos nacionalistas nas possessões e insistindo no discurso salazarista de que as "províncias ultramarinas" não seriam colônias, mas partes integrantes e inalienáveis de Portugal.

Localizada na Insulíndia, Timor era a mais esquecida colônia do império português. Os portugueses lá chegaram no início do século XVI, na esteira de suas conquistas no Oriente. Nos séculos seguintes, Portugal foi perdendo as suas possessões na Ásia para um concorrente mais poderoso: a Holanda. Em 1651, os batavos invadiram a parte ocidental da ilha. Em 1859 e 1914, foram estabelecidos os acordos que dividiram as partes oeste (holandesa) e leste (portuguesa). Timor, Macau e os enclaves na Índia  passaram a ser as remanescentes possessões de Portugal na Ásia.

Acompanhando a expansão imperialista do final do século passado, Portugal procurou consolidar o seu domínio na sua parte da ilha, dentro do processo de "colonização reflexa". Foram introduzidas as culturas de café, cana-sacarina e algodão no lugar das devastadas florestas de sândalo. A repressão sobre a resistência das populações locais recrudesceu, vencendo-as no início deste século.

Durante a 2ª Guerra Mundial, houve a invasão de tropas australianas e holandesas e, depois, japonesas, apesar da neutralidade de Portugal. Dezenas de milhares de timorenses morreram em decorrência dos combates ou de represálias japonesas por seu apoio aos australianos . No pós-guerra, a colônia continuou estagnada, não havendo significativos esforços em dinamizar a economia ou em melhorar as condições sociais. Timor servia apenas à exploração ultracolonial e para nutrir um sentimentalismo colonialista e romântico de bastião da lusitanidade na Ásia, além de lugar de degredo de opositores políticos. Em 1951, passou a ser considerada uma "província ultramarina" (como as demais colônias portuguesas), dentro da mística salazarista de potência multicontinental e panracial.

A dominação colonial portuguesa não diferia muito das outras metrópoles, mantendo formalmente diversas estruturas tradicionais de poder, como a dos liurais (chefes tribais ou clânicos, cujos papéis sociais foram redefinidos pelos colonizadores), e incentivando as rivalidades interétnicas de modo a manter os mauberes  desunidos. Como nas outras colônias, foi limitada a disseminação do idioma português, do catolicismo e da alfabetização, destarte o papel civilizador invocado para justificar o colonialismo. O tétum era a língua mais falada entre os timorenses. O português, oficial, era basicamente de uso das elites. Assim, a grande diversidade cultural existente no Timor Leste (é possível identificar vários grupos etno-linguísticos no território) perdurou como consequência da ocupação portuguesa, não se reconhecendo identidades com a Indonésia. Ou seja, a presença da cultura portuguesa, mesmo que limitada, contribuiu ainda mais para a singularização cultural maubere.

A Indonésia – que havia incorporado a parte ocidental (antes holandesa) da ilha de Timor logo após a 2ª Guerra Mundial - é um país de enorme heterogeneidade étnica, histórica, cultural e linguística, com pelo menos 25 idiomas locais, 250 dialetos e quatro religiões principais (predominando o islamismo). O golpe de Estado do general Suharto, apoiado por Estados Unidos e seus aliados, derrubou o governo do líder populista Sukarno em 1965, sob o pretexto de deter o avanço comunista. Foi um banho de sangue que vitimou centenas de milhares de indonésios. De caráter agressivo, militarista e essencialmente corrupto, a ditadura de Suharto promoveu a repressão e o enquadramento opressivo da população. Reforçou, também, a centralização política e o expansionismo que coibiam a diversidade existente no país, reforçando as tensões autonomistas opositoras à constituição de uma "Grande Indonésia", havendo conflitos autonomistas nas Molucas, em Sumatra (Aceh), na Nova Guiné (Irian Jaya), em Célebes (Sulawesi) e Bornéu (Kalimantan) e fronteiriços com a Malásia e Papua. A Indonésia ambicionava anexar a parte oriental da ilha de Timor, embora afirmasse reconhecer o domínio português.
 

NÃO Encaminhamento da Descolonização

O ano de 1975 foi emblemático no contexto do confronto Leste/Oeste. A queda do salazarismo em Portugal, a independência e ascensão de governos de esquerda nas ex-colônias portuguesas na África e os acontecimentos no Vietnã, Laos e Camboja levaram à determinação dos Estados Unidos e de seus aliados de não tolerarem novos "focos de tensão". Timor Leste independente sob um governo progressista assustava: temia-se um "efeito dominó", com o surgimento de mais um país "comunista" ou um estímulo autonomista às minorias étnicas na Indonésia. Jacarta procurou, então, solapar o processo de descolonização, posicionando-se contra a possibilidade de independência de Timor. A passividade e a timidez de Portugal frente às provocações indonésias contribuíram decisivamente para o malogro da descolonização.

A derrubada da ditadura salazarista pela "Revolução dos Cravos", de 25 de abril de 1974, motivou a formação de partidos políticos no Timor e a criação da Comissão para a Autodeterminação pelas autoridades coloniais ainda em 1974. A União Democrática Timorense (UDT) foi a primeira a ser legalizada. Esta agremiação conservadora defendia a progressiva autonomia política de Timor, mantendo fortes laços com Portugal. Ela representava os interesses dos membros timorenses da administração colonial e da elite local: proprietários dos plantations de café, negociantes e a maioria das pequenas comunidades portuguesas e chinesas , com o apoio dos liurais mais próximos ao poder colonial. Suas lideranças formaram-se no partido oficial do salazarismo, a ANP (Associação Nacional Popular), o único da ditadura . Assim, parecia interessante aos grupos conservadores, tradicionalmente privilegiados pelo regime colonial, a manutenção dos laços com a velha metrópole em uma forma de federação (claramente inspirados na ideologia colonial salazarista). Todavia, a radicalização da revolução em Portugal o processo de independência na África e a oposição da Frente Revolucionária por um Timor-Leste Independente (FRETILIN) e a consequente possibilidade de alterações no status quo na ilha levaram os partidários da UDT a procurarem outras alternativas de dominação política. A FRETILIN teve origem em um grupo de libertação que repudiava o colonialismo e o neocolonialismo. A maioria de seus quadros constituía-se de jovens militantes de formação menos tradicional que os da UDT: professores, estudantes, funcionários e representantes populares. A Frente sempre se posicionou pela independência de Timor. Seu programa era reformista (reafirmação da cultura timorense, implantação de cooperativas agrícolas nas terras não cultivadas, montagem de uma rede pública de escolas para a alfabetização e educação, política externa de não-alinhamento), com influências da social-democracia (José Ramos-Horta) e das experiências de Angola e Moçambique (Nicolau Lobato), radicalizando-se com o desenrolar dos acontecimentos (algumas fontes referem-se a influências marxistas chinesas). Era o partido de maior inserção popular. A Associação Popular Democrática Timorense (APODETI) defendia a integração à Indonésia e a adoção do idioma oficial indonésio (o bahasa), dentro do argumento da inviabilidade econômica da independência do Timor Leste. Era financiada  e treinada pela Indonésia. Este grupo não conseguiu carrear para si apoio popular significativo. FRETILIN e UDT, conjuntamente, contavam com a quase totalidade do apoio popular.

Os interesses conflitantes dos três principais partidos timorenses agravaram-se com a inabilidade portuguesa em conduzir as negociações para a autodeterminação do território. A equivocada insistência das autoridades portuguesas em manter a APODETI nas negociações (apesar de sua pequena representatividade) provocava a radicalização das posições da FRETILIN e atitudes indonésias ainda mais audaciosas. Em maio de 1975, a breve coalizão entre UDT e FRETILIN desagregou-se. Setores daquela viram a Indonésia como a alternativa para a (sua) governabilidade no território. Em julho de 1975, realizou-se a Conferência de Macau, boicotada pela FRETILIN face à presença da APODETI. A conferência resultou na proposta de se manter a soberania portuguesa até 1978, deixando em aberto a questão da independência. Em resposta, a FRETILIN insistiu na independência.

A tensão aumentava, com a aceleração dos contatos entre elementos da UDT e as autoridades indonésias. A elite local parecia, assim, preferir a abdicação da independência à possibilidade de um governo com integrantes da FRETILIN. Aproximava-se o estalar da convulsão interna. Os reforços militares metropolitanos enviados por Lisboa - 70 pára-quedistas, dois helicópteros, uma corveta - pareciam muito mais adequados a uma tarefa de evacuação do que a de manutenção da ordem frente à deterioração política na colônia ou de dissuasão da ameaça de invasão indonésia.

Algumas fontes argumentam que, por estar passando por conturbações políticas graves em 1975, Portugal não estaria em condições de restabelecer a ordem e levar o processo de descolonização a termo em Timor, assim como enfrentar a pressão anexionista indonésia. De fato, é verdade que Portugal encontrava-se envolvido em perturbações políticas internas na época, assim como sofria pressões externas de seus parceiros da OTAN (receosos com os rumos da revolução portuguesa). Porém, estas justificativas perdem sua força, tendo em vista que o envio de poucas centenas de efetivos para o Oriente não afetaria o poderio do aumentado exército português na metrópole (retornado das guerras na África), não desequilibrando, portanto, a composição de forças dos grupos revolucionários e destes com os contra-revolucionários no cenário pós-25 de abril. Da mesma forma, poderiam ter sido enviados mais unidades navais, pois não tinham influência decisiva nos confrontos metropolitanos. A demonstração de uma maior disposição política de resolver a questão da autodeterminação do território seria suficiente para garantir a estabilidade no Timor e arrefecer os crescentes conflitos entre os partidos timorenses, afastando o perigo de intervenção militar indonésia pelo esvaziamento do argumento de caos e vácuo político na colônia. Além disso, uma presença militar portuguesa mais efetiva também desestimularia uma invasão, controlando as operações de desestabilização levadas a cabo na fronteira por comandos das forças armadas indonésias, além de cumprir a função de dissuasão.

Assim, Lisboa poderia ter garantido o equilíbrio político e a continuidade do processo de autodeterminação em Timor Leste sem provocar desequilíbrios em Portugal. Com efeito, ficava patente o desinteresse português em empenhar maiores esforços para levar adiante o processo de descolonização. Certamente, este desinteresse não passou desapercebido a timorenses e indonésios. No plano diplomático, Portugal também poderia ter tomado posições mais resolutas frente às atitudes intervencionistas e desestabilizadoras indonésias, apelando para a ONU, que reconhecia a sua condição de "potência administrante".

Após contatos com os indonésios (general Ali Murtopo), partidários da UDT tentaram um golpe de Estado em 11 de agosto de 1975. Obtendo armas da Polícia de Segurança Pública (PSP), cercaram o palácio do governo e tomaram o aeroporto e a estação de rádio em Díli. Um ultimatum foi enviado às autoridades coloniais, exigindo a formação de um governo de transição composto por representantes da administração colonial e elementos timorenses "moderados" e a prisão das principais lideranças da FRETILIN. O golpe, muito mais que voltado para a independência, era dirigido contra a FRETILIN. O governador Lemos Pires tentou, em vão, um entendimento entre os partidos. Em seguida, ordenou aos oficiais metropolitanos a entrega do comando das unidades militares aos praças timorenses  e a preparação da retirada de autoridades, staff colonial e militares metropolitanos para a ilha de Ataúro (ao norte, em frente à Díli) e, depois, para Portugal (o que lembra a precipitada retirada dos portugueses de Angola). Enquanto isto, a FRETILIN reagiu ocupando o quartel-general português. Era a guerra civil. As unidades militares, sob comando dos praças timorenses, fragmentaram-se, aderindo a maioria à FRETILIN. Seguiram-se sangrentos combates, que estenderam-se até princípios de setembro, entre a FRETILIN, que saiu vencedora, e a composição UDT/APODETI. Derrotados, os golpistas refugiaram-se na Indonésia, onde, sob os auspícios desta, integraram-se em um "movimento anticomunista".

Vitoriosa na guerra civil, dispondo do apoio da maioria da população e frente ao vácuo político deixado pela fuga da autoridade colonial (governador, funcionários e militares metropolitanos refugiaram-se em Ataúro), a FRETILIN deparou-se com a responsabilidade de administrar o território. Além disso, a Indonésia intensificava as operações de desestabilização e dava sequência à intervenção militar na fronteira (Operasi Komodo), tentando criar a ilusão da continuidade da guerra civil. Consequentemente, foi adotada a alternativa que de fato já existia: a proclamação da independência. Em 28 de novembro de 1975, foi proclamada a independência da República Democrática do Timor Leste, com a esperança de conseguir o apoio da ONU contra a ameaça indonésia.

Dez dias depois e poucas horas após a visita oficial do presidente norte-americano Gerald Ford e do secretário de Estado Henry Kissinger à Indonésia, dava-se prosseguimento à Operasi Komodo, com a invasão do Timor Leste. Pesado bombardeio de Díli, lançamento de tropas anfíbias e de pára-quedistas e avanço de milhares de soldados constituíram a ofensiva. As forças da FRETILIN resistiram, mas frente à descomunal disparidade numérica e bélica, retiraram-se para o interior.

Os portugueses, após assistirem à guerra civil e à invasão desde Ataúro, retiraram-se para Portugal ainda em dezembro. Em julho de 1976, a Indonésia anexou Timor Leste como mais uma de suas províncias.

No cenário internacional, a invasão indonésia acendeu debates na ONU. Logo após a invasão, a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança exigiram a retirada das forças invasoras e o respeito ao direito do povo timorense à autodeterminação, resoluções desconsideradas por Jacarta. Portugal, por sua vez, limitou-se a romper relações diplomáticas com a Indonésia. Os portugueses só assumiram uma atitude diplomática mais resoluta a partir de 1986. Já a imprensa internacional rapidamente esqueceu-se de Timor Leste. O assunto só voltou a ter destaque na ocasião da entrega do Prêmio Nobel da Paz ao bispo de Díli, Ximenes Belo, e a um dos lideres da resistência, o professor José Ramos-Horta, em 1996.
 

NÃO aos Invasores (ou Resistência e Genocídio)

Invadido o território timorense, as forças armadas indonésias, com o objetivo de conseguir uma vitória rápida sobre a resistência da FRETILIN e da população, concentraram-se em práticas de generalização do terror e do medo. Era o início do genocídio em Timor Leste. Massacres de civis, violações de toda ordem e repressão indiscriminada caracterizaram as ações indonésias. Só nos primeiros dias da invasão foram mortas milhares de pessoas. Entre as inúmeras vítimas, figuravam jornalistas estrangeiros (australianos, ingleses e neozelandês) .

A dominação indonésia tem se caracterizado por uma violência inaudita, constituindo-se num genocídio ostensivo de poucos precedentes na história contemporânea. Várias fontes estimam em mais de 200.000 mortos (em uma população de 680.000 em 1975) as vítimas da invasão. A situação médico-sanitária deteriorou-se sensivelmente com dezenas de milhares de famintos, consequência da fuga da população para o interior, da destruição das plantações por bombardeios indonésios indiscriminados com napalm e do total desequilíbrio econômico e na produção dos meios de subsistência resultantes. A Anistia Internacional tem denunciado diversos atos hediondos por parte dos ocupantes indonésios, como fuzilamento de civis, tortura física e psicológica em prisioneiros, "desaparecimentos", esterilização forçada de mulheres, violações e abusos sexuais de toda ordem. Além destes horrores, a nova potência colonial (ainda mais repressora que a anterior) patrocinou deportações em massa da população, seu confinamento em "aldeias de repovoamento" e a imigração de javaneses e de outras etnias estranhas ao Timor (transmigrasi), privilegiadas em detrimento dos timorenses.

Entre a invasão, em dezembro de 1976, e janeiro de 1989, Timor Leste permaneceu hermeticamente fechado e isolado do resto do mundo. O acesso ao território era terminantemente vedado a pessoas não autorizadas, sejam estrangeiros ou indonésios. Somado ao genocídio físico, o genocídio cultural ocorreu com a descaracterização da história da ilha, a disseminação da ideologia da "Grande Indonésia", a imposição de uma "civilização indonésia", a proibição do idioma português e o desestímulo das línguas locais em prol do bahasa.

Os países ocidentais e o Japão, aliados e parceiros econômicos da ditadura de Suharto, apoiaram a invasão e a ocupação. Os Estados Unidos forneceram treinamento militar e armamento para a Indonésia, usados na repressão e sabotaram as iniciativas da ONU (a ilha está estrategicamente situada e o Mar de Timor é rota de passagem de submarinos atômicos). Outros países ocidentais (entre eles, Reino Unido, Holanda e Alemanha) também têm fornecido armamentos para os indonésios. A Austrália reconheceu e apoiou a ocupação indonésia, enquanto explora conjuntamente com este país as reservas petrolíferas no Mar de Timor (inclusive na parte leste-timorense do mar, o Timor Gap). Além disso, os australianos reforçaram seus acordos militares com a Indonésia e têm sido fieis seguidores da política externa norte-americana desde a 2ª Guerra Mundial.

Em suma, as razões dos países ocidentais apoiarem a ocupação indonésia e silenciarem sobre as atrocidades cometidas foram: o anticomunismo militante e a importância estratégica da Indonésia no contexto da Guerra Fria; sua importância econômica, com suas riquezas naturais, seu potencial de mercado consumidor e a política econômica de Suharto extremamente favorável aos capitais externos; os interesses dos vendedores de armas; por fim, a riqueza petrolífera do Timor Gap.

Entretanto, apesar da ocupação brutal e do apoio externo, não se conseguiu destruir a resistência da FRETILIN e da população. A resistência timorense armada e política sempre esteve atuante. As Forças Armadas de Libertação Nacional do Timor-Leste (FALINTIL) continuaram hostilizando as tropas indonésias, mesmo não contando com ajuda externa. Em 1988, foi criado o Conselho Nacional de Resistência Maubere (depois Conselho Nacional de Resistência Timorense – CNRT), sob a liderança de Xanana Gusmão, agrupando as forças de resistência, inclusive membros da UDT consternados com a brutalidade da ocupação e insatisfeitos com o deslocamento de sua posição privilegiada em prol dos indonésios. A resistência ao genocídio cultural tem sido feita pela insistência do uso do português como um dos idiomas falados e, sobretudo, pela adesão da população ao credo católico. Se no final do domínio português, em 1975, somente 32% da população eram católicos, em 1984, 79% dos timorenses o eram. As marcas culturais do antigo colonizador acabaram sendo objeto de uma requalificação positiva como forma de preservação da identidade timorense e de recusa dos valores do novo colonizador.
 

NÃO à Indonésia no Referendo (ou a Autodeterminação é Filha da Coragem)

A viragem internacional em favor da autodeterminação timorense aconteceu com o incidente do Massacre de Santa Cruz, ocorrido em 12 de novembro de 1991: centenas de pessoas foram mortas na repressão indonésia a uma manifestação pacífica, desta vez testemunhada por jornalistas ocidentais e divulgado mundialmente por alguns abnegados. As alterações na conjuntura internacional na passagem dos anos 80 para os 90 também significaram mudanças nas políticas externas dos países em relação à questão do Timor. A obstinada e inusitada resistência timorense estava anulando as vantagens estratégicas da ocupação indonésia, fazendo os norte-americanos reavaliarem as suas posições e pressionarem os indonésios para entrarem em um acordo. O Congresso norte-americano tem dificultado a venda de armas para a Indonésia, sob o argumento da violação aos direitos humanos. A queda do "socialismo real" esvaziou o argumento anticomunista. Na esteira dos acontecimentos, os novos gabinetes australianos têm revisto a posição com respeito à questão, assim como os governos dos países europeus. A Assembléia Geral e o Conselho de Segurança da ONU têm aprovado sucessivas resoluções pela retirada da Indonésia e em favor da autodeterminação do Timor Leste e o Parlamento Europeu condenou o genocídio contra os timorenses e defendeu o seu direito à independência.

Em 1994 e 1996, ocorreram as conferências da Coligação da Ásia-Pacífico por Timor Leste (APCET). Em outubro de 1996, Ximenes Belo e Ramos-Horta receberam o Prêmio Nobel da Paz, clara demonstração da colocação da questão timorense na agenda internacional. Em julho de 1997, durante visita oficial à Indonésia, Nélson Mandela encontrou-se com o líder timorense preso Xanana Gusmão e, posteriormente, com Ramos-Horta na África do Sul. A Anistia Internacional e diversas ONG em vários países (Estados Unidos, Canadá, Austrália, Portugal, Espanha, Brasil, entre outros) têm denunciado a violenta ocupação indonésia e apoiado à causa timorense.

Por sua vez, Portugal empenhou maiores esforços diplomáticos na questão do Timor a partir de 1986 (ano em que ingressou na União Européia) e tentou atitudes conciliatórias com a Indonésia, dando fim à postura negligente até então demonstrada. Com o Massacre de Santa Cruz houve um novo ponto de inflexão na política portuguesa em relação ao Timor. A partir de então, tem se engajado ainda mais em encontrar uma solução para o problema, procurando conversações com a Indonésia junto à ONU, buscando apoio com seus parceiros europeus e objetando-se à Austrália na Corte Internacional de Justiça na questão da exploração de petróleo no Timor Gap.

A grave crise econômica na Ásia em 1997 explicitou as fraquezas e o colapso do modelo econômico adotado pelos países "emergentes" da região. A economia indonésia sucumbiu por completo, agravando sensivelmente as já más condições de vida de sua população. Seguiram-se a crise política, a queda de Suharto, após grandes manifestações populares em maio de 1998, e a possibilidade de reformas na Indonésia. Revoltas étnicas em diversas regiões e graves conflitos religiosos tem ocorrido, ameaçando desintegrar o país, assim como cresceram as manifestações timorenses pró-independência, invariavelmente reprimidas com violência e mortes.

Frente a estas pressões internas e externas, o sucessor de Suharto, Jusuf Habibie, flexibilizou as posições indonésias com respeito ao Timor Leste, encontrando-se com Ximenes Belo, retirando algumas tropas de ocupação e relaxando a prisão de Xanana Gusmão. Em seguida, aceleraram-se as negociações, sob o patrocínio da ONU, entre Indonésia e Portugal, para a busca de uma solução para a questão timorense. Em 5 de maio de 1999, os ministros de negócios estrangeiros de Indonésia e Portugal – Ali Alatas e Jaime Gama - chegaram a um acordo para a aplicação de uma consulta popular ao povo timorense com respeito a sua autodeterminação, mediante votação direta, secreta e universal. O referendo está sendo organizado pela ONU, através da Missão de Assistência das Nações Unidas em Timor Leste (UNAMET).

Em junho de 1999, ocorreram eleições para o parlamento da Indonésia. O oposicionista Partido Democrático Indonésio – Luta (PDI-P), de Megawati Sukarnoputri (filha de Sukarno), venceu, enfraquecendo ainda mais a posição do partido governista, o Golkar.
Todavia, o processo de consulta transcorreu de forma extremamente traumática. Os "setores duros" indonésios são refratários à libertação de Timor Leste. O acordo de maio estabeleceu que os militares indonésios seriam os responsáveis pela segurança no território durante o processo de consulta. Temerária decisão, tendo em vista a posição indonésia de parte sumamente interessada e o seu histórico de ocupação violenta. Os militares indonésios formaram e apoiam as milícias integracionistas, que aterrorizavam a população, perseguiam os independentistas e atentavam contra as equipes da UNAMET e os jornalistas estrangeiros. De fato, a violência foi recrudescendo de acordo com a aproximação do dia da votação, que foi transferido para o final de agosto de 1999 pela UNAMET por motivo de falta de segurança. As ameaças da UNAMET de abandono do território caso a violência persistisse estimulavam ainda mais as hostilidades dos interessados na não realização do pleito.

Finalmente, em 30 de agosto, realizou-se a votação. Os timorenses compareceram maciçamente, enfrentando os perigos e demonstrando enorme coragem. A violência continuou durante a contagem dos votos: funcionários timorenses da UNAMET foram assassinados e o centro de escrutínio, em Díli, foi cercado pelas milícias. A UNAMET acelerou a contagem e antecipou a divulgação dos resultados do pleito: por larga margem, os timorenses optaram pela independência .

Em resposta, a anunciada e esperada violência das milícias e dos militares indonésios explodiu. Cidades e aldeias inteiras foram saqueadas e incendiadas. Igual destino teve a casa paroquial do bispo Ximenes Belo, as instalações e os equipamentos da UNAMET, enquanto os seus funcionários e os correspondentes estrangeiros eram obrigados a fugir para a Austrália . As FALINTIL, acantonadas em lugares específicos conforme acordado com a UNAMET, não puderam sair em defesa dos timorenses, mas acolheram milhares de refugiados em seus acampamentos. A maior parte da população refugiou-se nas montanhas, na Austrália e em Timor Oeste (para onde muitos foram deportados pelos militares indonésios), passando privações.

Enfim, após semanas de caos e barbárie patrocinados pelos militares indonésios, uma força internacional de paz, rapidamente articulada pela Austrália (a Interfet) , foi autorizada pela ONU para intervir e reestabelecer a paz no território, após a relutante concordância do governo indonésio, pressionado pelos países ocidentais. Em 20 de setembro de 1999, a Interfet desembarcou numa devastada e quase deserta Díli. Em seguida, houve choques dos soldados australianos com militares indonésios e milícias pró-Jacarta, que causaram a morte de um policial indonésio e de alguns milicianos.As milícias e os militares indonésios retiraram-se para Timor Oeste, com o intuito de atacarem a partir de lá.
 

Timor Lorosae! (ou Timor do Sol Nascente!)

Os choques ocorridos entre a Interfet e as milícias e militares indonésios e suas consequências mais imediatas parecem manifestar bem mais do que o elevado preparo militar dos soldados australianos, a qualidade de suas equipagens e a sua disposição em apertar o gatilho. De fato, a rápida mobilização de uma força multinacional de paz pela Austrália (e por sua escudeira Nova Zelândia) refletem as mudanças estratégicas naquela região do globo (e na consolidação da Nova Ordem Mundial) . Os australianos passaram a ser os principais aliados e agentes da política externa norte-americana no sudeste asiático no lugar da combalida Indonésia , o que é admitido pelas próprias autoridades de Camberra. A própria mudança da posição dos pragmáticos australianos com respeito à questão timorense (que provocou profundos ressentimentos em Jacarta) pode ser melhor entendida a partir destas constatações (bem mais que uma súbita consternação das autoridades australianas em relação ao genocídio praticado em Timor).

Em janeiro de 2000, a Administração de Transição das Nações Unidas em Timor Leste (UNTAET) deverá assumir o governo de Timor Leste e os "capacetes azuis" da ONU deverão substituir a Interfet . A composição da administração da ONU e de suas tropas de paz poderá revelar como ficará a nova relação de forças na região. Os asiáticos não vêem com bons olhos o fortalecimento da presença dos "caucasianos" no Oriente.

Com respeito ao Timor Leste, espera-se que as disputas internas (reflexos das divergências que perduram desde a década de 70 entre progressistas e conservadores), que estão reaparecendo no seio do CNRT a partir do afastamento do inimigo indonésio, possam ser resolvidas pacificamente sob a incontestável liderança de Xanana Gusmão. Com certeza, os timorenses saberão discernir entre os verdadeiros e históricos defensores de sua liberdade e independência e os oportunistas, sempre de plantão. Assim, os timorenses poderão, finalmente, determinar os seu próprio futuro e decidir a forma de sua inserção no mundo que alguns pretendem que seja homogeneamente globalizado. Coragem, os timorenses já demonstraram ao mundo que não lhes falta. A autodeterminação de um povo é, seguramente, condição sine qua non para sua liberdade e para o exercício pleno da democracia.
 
 


* Agradecimentos aos amigos da Procuradoria Regional da República da 4ª Região e ao companheiro Giba Assis Brasil.

** Gerson Luís Albrecht Anversa NÃO é econometrista e NÃO é historiógrafo. É, sim, economista político e historiador.



Principais Fontes

Livros:
ANDERSON, P.. Portugal e o Fim do Ultracolonialismo.RJ: Civilização Brasileira, 1966.
ANVERSA, G.. Timor-Leste: Descolonização Malograda e Genocídio. P. Alegre: Folha da História, Agosto/1998.
___________. Timor Leste: a autodeterminação é filha da coragem IN: PADRÓZ, E. S. et alii (Org.). Contrapontos: ensaios de história imediata. P. Alegre: Folha da História, 1999.
CHOMSKY, N.. Os Caminhos do Poder – Reflexões sobre a Natureza Humana e a Ordem Social. P. Alegre: Artes Médicas, 1998.
____________. A Luta de Classes: entrevistas a David Barsamian. P. Alegre: Artes Médicas, 1999.
WALDMAN, M. e SERRANO, C.. Brava Gente de Timor - a saga do povo maubere. SP: Xamã, 1997.

Páginas na Internet:
http://etan.org (East Timor Action Network).
http://www.easttimor.com.
http://www.mojones.com (Mother Jones).
http://www.pactok.net.au.
http://www.un.org/peace/etimor/.
http://www.uc.pt/Timor/.
http://www.unitel.net/udttimor/.

Periódicos:
Cadernos do Terceiro Mundo
Correio do Povo
Diário de Notícias (edição on line)
Época
Financial Times (edição on line)
Folha de São Paulo
Isto É
Jornal de Notícias (edição on line)
Jornal do Brasil (edição on line)
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Le Monde - Edition Internationale
Newsweek
O Estado de São Paulo
Público (edição on line)
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Zero Hora.
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