Doméstica

 

Pedro Granato

(estudante de cinema na ECA-USP, 18 anos)

 

Ela preparava o almoço mais uma vez. Uma hora antes a Patroa tinha escolhido seu cardápio de maneira indiferente. Tudo andava como sempre. Tinha chegado às oito, arrumado o café, lavado a louça. Forrava as camas e dobrava camisetas jogadas no chão, limpava as sujeiras do cachorro que ela ainda por cima tinha que alimentar. Os piores dias são os que tem que lavar banheiros e esvaziar o lixo, sempre atendendo a porta e o telefone.

A adolescente, filha dos donos da casa tinha chegado chorando, batendo portas e se abraçando com seu cachorro. Nesses dias a filha dos donos da casa passa tardes no telefone, vendo tv e comendo montes de bolachas. A Empregada, então, fica ouvindo o rádio na cozinha onde enxuga a louça do almoço e depois prepara o jantar. Não pode usar o telefone porque a adolescente não o larga e fica histérica quando a linha está ocupada para receber suas ligações. Eram sempre as mesmas três amigas que ligavam, deixavam recados, reclamavam da linha ocupada e queriam saber de tudo quando a adolescente que chorava tinha saído.

A Empregada tem uma filha, mais ou menos da mesma idade da adolescente. Ela liga às vezes para a casa em que a mãe trabalha mas odeia a adolescente, filha dos donos da casa. Essa também, despreza aquela menina que sempre pede para chamar a mãe, que fica na lavanderia, com um rádio porcaria alto, e a faz ir até lá para explicá-la que o telefone estava tocando e ela estava estudando e não queria receber ligações.

Estava pondo a mesa quando a Patroa veio:

-Minha filha não vai mais comer conosco. Ela está meio indisposta, vê se prepara um pratinho para ela mais tarde. Eu e o seu Patrão iremos comer agora, que eu estou com pressa. Pode ir servindo que ele já está chegando.

-Mas o Patrão sabe que a menina não quer almoçar?

-Não interessa, isso é entre eu e ela.

A Empregada dispõe os talheres de forma correta sobre a mesa. Dois copos em cada lugar, água com gelo e suco de laranja nas jarras transparentes. O sininho sobre a mesa para se quiserem chamá-la. Na hora do almoço ela tem que desligar o rádio, estão todos muito apressados e não querem barulho. Ela ouve que o Patrão chegou. Ele solta suas malas na mesa próxima a porta, sobe para dar "oi" a esposa que arruma contas no quarto. Demora um pouco mais tempo no quarto da Patroa, trancando a porta. A empregada já serviu a comida, mas não quer incomodá-los, então põe a comida no forno novamente, para não esfriar. Liga o rádio e espera que os dois desçam.

O Patrão chega à cozinha, de um jeito relaxado.

-Bom dia, D. Empregada. Fez o suquinho para mim?

-Fiz, sim Senhor. Já boto na mesa.

Por trás dele surge a Patroa.

-O que aconteceu que ainda não está na mesa? Vamos, que eu estou atrasada.

O Patrão:

-E onde está minha filha adolescente? Chame-a para almoçar.

-A Patroa disse que ela não vai almoçar, Senhor.

-Como não vai almoçar? Vai almoçar sim!

A porta se fecha e ouve-se a conversa entre os Patrões, só que abafada.

(-Chame sua filha! Almoço aqui em casa é com a família inteira.)

(-É que ela não está se sentindo bem..)

(-Porquê? Tá enjoada? Manda ela descer para falar comigo, pelo menos. Que história é essa..)

Toca o sininho. A Empregada vai até a mesa.

-Sim, Senhora?

-É para mandar a adolescente vir para mesa.

-Sim, senhora.

-E traz o sal também.

A Empregada liga para o quarto da adolescente. Ninguém atende. Ela enxuga as mãos e sobe até o quarto. Encosta próximo à porta.

-Sua mãe pediu para "você" ir almoçar.

(-Eu já falei que não vou.)

-Mas seu Pai tá te esperando.

Silêncio. Mas a Empregada não pode desistir.

-Olha... teu Pai vai ficar bravo.

(-Foda-se meu Pai.)

A Empregada desiste. Desce. Pede licença. Avisa aos Pais que a adolescente não quer descer. A Mãe diz que vai chamá-la, mas o Pai a mantém na mesa.

-Eu vou chamar essa menina.

A empregada volta a cozinha e tenta ouvir o que se passa. Ouve batidas na porta. Uns gritos. Ouve o pai descendo as escadas.

-Ela já vem.

A adolescente parece descer. Passa na cozinha e xinga a empregada. Está com o cachorro no colo, o rosto inchado e vermelho.

Entra na Sala. Senta-se de lado na cadeira e brinca com o cachorro, falando baixo como uma criança e roçando a cara nos pêlos.

-Tira o cachorro da mesa e vai lavar o rosto. Depois vem falar comigo e sua Mãe.

A adolescente continua brincando com o cachorro. A Mãe pede calma ao marido.

-O que aconteceu, minha filha?

A adolescente continua brincando com o cachorro.

-Come um pouquinho. A comida está boa. Quer que eu mande a Empregada preparar alguma coisa para você?

A adolescente continua brincando com o cachorro.

A Empregada ao ouvir isso desabafa sozinha. Ela não aguenta mais tudo isso. A adolescente é mimada e grossa. Todo dia na hora em que vai pegar o primeiro ônibus para ir para casa, ela conversa com outra Empregada de outra família. Ela quer ir embora, o salário não é bom, é cheio de serviço, ela mal pode usar o telefone. Mas ela sempre vai ficando. Ela quer pedir as contas. Toca o sininho.

-Faz um omelete para minha filha. –dirige-se a filha adolescente- Você quer um omelete?

-Não.

-O que você quer que a Empregada faça para você? Quer um bolo para o fim da tarde? Não?

O Patrão se dirige à empregada:

-Ela não quer nada. Acho que já pode tirar a mesa.

A Empregada vai então tirando as travessas, duas de cada vez, e levando para a pia. Retira os pratos, temperos, enquanto a família está sentada na mesa. A adolescente fica olhando para baixo e finge não perceber a existência da empregada.

Após ter retirado a mesa ela começa a trazer o sorvete que o Patrão pediu, junto com suas caldas prediletas.

-D. Empregada, faça um bolo mais tarde para minha filha. Eu estou saindo e vai passar o homem do gás. Eu te deixei um cheque ontem, não deixei?

-Deixou, sim Senhora.

-Então, compre o gás com ele. Eu chego à tarde com as compras, deixa uma listinha na minha cabeceira.

-Senhora, eu queria conversar com a senhora depois.

-Depois, agora não tenho tempo.

À tarde a menina fez o que sempre fazia quando chegava chorando. Agarrou-se no seu cachorro, comeu bolachas, viu tv e falou no telefone. A empregada também fez o que sempre fazia. Ouviu rádio AM enquanto lavava a louça do almoço, preparava o bolo, atendia telefones para a adolescente e comprou gás. Hoje, ela também tinha que lavar os banheiros e tirar o lixo. E ela não podia levar seu rádio para o banheiro, porque a adolescente estaria estudando. No rádio AM a empregada ouvia as tragédias das ouvintes. Ouvia música. Ouvia rezas, e rezava ao Senhor para ter calma, para que ganhe dinheiro um dia e compre coisas parecidas com as de seus Patrões. Rezava enquanto enxaguava os copos do almoço. A água da torneira era morna, diferente dos líquidos que escorriam do copo, frios como gelos. Raspava com a faca o molho para dentro do lixo, que já tinha outros restos de comida.

A adolescente estava esparramada no sofá, com a meia encardida no pé, trocando às vezes de canal. Contava tudo que um adolescente teria falado para outra adolescente que por sua vez, teria contado para ela. E ouvia conselhos, fazia sugestões, de olhos na tv e com um caderno no colo. Distraia a mão fazendo desenhos abstratos, ou colorindo colunas do caderno.

A campainha tocou.

A Empregada foi atender. A adolescente esperava que a Empregada fosse atender. Era um medigo. Não tenha medo, não vim para roubar, mas para pedir um pouco de comida. Às vezes tinha vontade de roubar mas Deus o ajudava a ser honesto. Deus pedia para que ele não fosse roubar. É claro que tinha bafo, e suas roupas já haviam reabsorvido o suor de há pouco. Comida, não teria, só as bolachas ou o bolo que ela preparava para a adolescente. Mas essas a Empregada não daria, principalmente para vagabundo.

A adolescente foi ao banheiro que depois limpariam para ela.

O telefone tocou.

A Empregada fechou a porta, trancou-a, e foi atender. Procurou a adolescente e como ela não respondia achou que ela estaria dormindo ou tivesse saído. Pediu a uma das três amigas que sempre liga, que sempre ligasse mais tarde.

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A Empregada foi lavar o banheiro depois de ter terminado quase todo serviço para que pudesse terminar de lavá-lo no dia seguinte.

O telefone tocou.

A adolescente esperou a Empregada atender, gritou para que ela fosse atender, mas acabou atendendo.

-Como assim onde eu tava?

-Não, não saí daqui.

-Ela falou que eu tinha saído?

-Vaca!

A adolescente encosta o telefone no sofá e começa a berrar histérica atrás da Empregada. Demora até que a Empregada ouça e seja encontrada ajoelhada lavando a privada. A adolescente a xinga muito, porque ela mentiu no telefone, para ficar usando o telefone, e que ela precisava ter falado com a amiga dela. A Empregada não responde, fala que vai embora. Vai pedir as contas. Não agüenta mais. A adolescente cuspe na cara da Empregada. Ela começa a chorar e reza por calma, ajoelhada na privada. A menina vai atender o telefone e conta que xingou a Empregada. Que vai contar para a Mãe. Que ela recebe para fazer aquilo. Recebe 500 reais por mês mais a condução. Quase o preço do colégio adolescente! Que ela come de graça em casa e tem até um quarto se quisesse dormir na casa! Quase do tamanho do banheiro dos Patrões! A Empregada quer voltar para casa. Demora mais de uma hora e meia, dois ônibus, lotados, mas ela quer conversar com sua amiga. Ela reza para que seu marido não chegue bêbado em casa. Ela reza para não se atrasar. Ela reza para nunca mais ter que passar por isso. Amanhã ela fala com a Patroa. Ela vai ler seu livro bíblico no ônibus, quando conseguir sentar. Ela quer ouvir o rádio. Ela quer descansar. Guarda os produtos no balde, lava o rosto, e desce para pegar sua bolsa. Fecha as portas, tira o bolo pronto do forno e deixa na mesa. A adolescente ao descer para a cozinha manda que ela saia imediatamente da casa. Ela é xingada pela Empregada. Melhor criança que vaca! A Empregada tenta se controlar, a adolescente bate a porta e vai brincar com o cachorro.

A Empregada olha o bolo em cima da mesa.

A Patroa chega à noite. Acende a luz da porta, pendura a chave do seu carro. Na garagem ela viu que o marido ainda não chegou. Vai tomar um copo d’água gelada. O jantar está em tapewares. Ela depois os aquecerá no microondas quando o marido chegar. Em cima da mesa ela vê o bolo, já com uns pedaços a menos. Resolve pegar um pedaço enquanto espera o Patrão. O bolo esfarela um pouco no chão, mas ela não liga. Sobe para procurar a filha, ouve a televisão ligada. Vai ao seu banheiro que ainda não foi limpo, e que acumula papéis higiênicos usados. Começa a sentir uma dor de barriga, senta rápido no vaso, levantando a saia e tirando a calcinha. Depois de uma hiper-ventilação acaba fazendo só xixi e acrescenta um papel a mais para ser retirado amanhã do lixo. Os papéis estão quase transbordando, com um caído no chão. A Patroa se levanta, sente tontura. Lava o rosto. Quer tomar um remédio, um calmante talvez. Vai pegar um calmante na sua bolsa quando passa pela tv e vê sua filha no chão, o cachorro lambendo-lhe a face. Quer algum remédio. Chama sua filha. Uma aspirina? Chama sua filha de novo, baixo. Sua filha está pálida. Está suando frio. Abaixa para ver sua filha, sua pressão desce. A filha está fria. A Patroa cai.