Índio quer apito?
 
 

Marcelo Träsel
 
 

"comunidade indígena a 500m" escrito em branco sobre a placa verde. tratava-se de um barracão esburacado onde algumas velhas usando camisetas de candidatos a vereador pelo ppb ou pfl vendiam cestas de vime e arcos e flechas adornados com penas de galinha tingidas de cores definitivamente artificiais. crianças morenas seminuas brincando sujas pela argila em volta do barracão. quem viajou de carro pelo brasil com certeza já passou por várias "comunidades" como esta; não mais do que favelas, na verdade.

esta cena é fruto da arrogância dos colonizadores. nós. sim, ainda somos colonizadores. minha família veio da alemanha há cem anos, ocupou terras tiradas dos índios que viviam no vale do taquari. hoje estes índios foram todos reunidos em "comunidades" pelo governo e vivem em beiras de estrada. os mais sortudos, na região norte do país, são colocados em pedaços de mata virgem isolada, como viviam antes da colonização. será?

é impossível que os índios voltem a viver como antes da chegada do homem branco, depois de ter travado contato com a civilização. seus antepassados já foram escravizados, trabalharam por salário mínimo, foram expulsos de suas terras por grileiros e garimpeiros, foram massacrados. assistiram televisão, ouviram rádio, alguns aprenderam a ler. aprenderam a beber cachaça e fumar cigarros. ganharam shorts e havainas. depois de tudo isso, um governo institui a funai e resolve mandar todos os índios de volta para o meio do mato, onde eles eram felizes, longe das escolas e hospitais. já contaminamos a cultura deles, agora podemos deixá-los à própria sorte.

o único problema foi o arrogante homem branco ter esquecido de perguntar aos índios se era essa sua vontade. não entendo o que nos faz pensar sabermos o melhor caminho para os antigos ocupantes desta terra [os índios jamais se consideraram seus donos]. deve ser a mesma mentalidade que fez os jesuítas pensarem ser melhor para os silvícolas colocar uma roupa, construir igrejas e aprender a amar a deus. depois de destruir sua cultura, queremos devolvê-los à selva. resultado: os índios terminam, raras exceções, por fabricar cestos de vime para vender nas beiras de estrada. ou por devastar as matas virgens de suas terras para vender a madeireiras inglesas. porque índio não quer mais apito. índio quer casa, carro, computador. tudo o que o homem branco tem. tudo o que o homem branco mostrou para os índios, antes de jogá-los de volta à selva, analfabetos e pobres.

os índios já perderam sua cultura, assim que desaprenderam com os portugueses a serventia do ouro. exceto por algumas poucas tribos sortudas que nunca viram olhos azuis, os indígenas estão irremediavelmente contaminados pela febre de consumo. isso não é tão mau quanto parece. hospitais e escolas são bens cuja construção demandou aos europeus milênios de evolução. ervas da floresta podem curar muita coisa, mas duvido que substituam um transplante de coração. e o conhecimento dos índios poderiam ser muito útil aos médicos brancos. em cuba, país que tem a melhor medicina do mundo, os remédios mais usados vêm de plantas, pesquisadas por cientistas junto aos curandeiros. os índios poderiam ajudar nossa cultura a evoluir em diversos setores, em contrapartida deveriam compartilhar as benesses da civilização. perguntem a um índio desses que vendem cestos se ele não preferia ser médico, jornalista ou engenheiro.

alguém vai considerar esta proposta uma heresia. "no xingu os índios vivem na floresta em comunhão com a mãe terra, numa sociedade igualitária. eles são mais felizes longe da civilização." bem, os índios do xingu são empresários. extraem madeira [de maneira sustentável, espera-se] e têm aviões e escolas. são a melhor experiência da funai com reservas. a civilização não parece ter feito mal a eles. sua cultura está mais forte do que nunca. aprendem a escrever em sua própria língua, tarefa impossível sem a ajuda dos gramáticos brancos. em contrapartida, existe uma tribo na amazônia cuja maior diversão entre os jovens é trocar cacetadas. muitos deles têm o crânio afundado em vários locais. índios são exemplo de respeito aos idosos. há uma outra tribo em que as velhas são obrigadas a andar de quatro o dia todo, para que os adolescentes possam ter a iniciação sexual com elas, quando sentirem vontade. há pessoas que se escandalizam com o chador das mulheres afegãs e pregam a invasão do país pela civilização ocidental. se alguém propuser o mesmo com as mesmas tribos cujos hábitos foram descritos, será tachado como reacionário. reacionarismo é a arrogância dos brancos em manter os índios ignorantes, acreditando, talvez até mesmo sinceramente, ser este o melhor caminho. estas pessoas estão sinceramente equivocadas.

a cultura indígena deve ser preservada, sim. o conhecimento da natureza e a filosofia de vida dos índios pode trazer revoluções na cultura ocidental. do mesmo modo que a cultura ocidental pode melhorar as condições de vida das tribos restantes e até mesmo permitir uma melhor difusão de sua cultura. imagine uma página na internet onde se pudesse ler sobre o conhecimento dos ianomâmis, por exemplo. feita, evidentemente, por um dos próprios ianomâmis. grande parte de todas as culturas é composta por crendices calcadas na ignorância. outra parte é conhecimento realmente útil. os índios brasileiros precisam de educação, devem conhecer a cultura e a tecnologia dos brancos, para poder decidir o que é bom em sua própria cultura e eternizar estas partes, deixando para trás os costumes baseados na falta de horizontes. eles devem ser integrados o mais rápido possível à sociedade, para que todos possamos aproveitar seu tesouro cultural e eles possam aproveitar a infraestrutura da civilização para potencializar suas manifestações culturais e ajudar a decidir os rumos do Brasil. Que, afinal, já foi deles.