Complementando os anos 70
por Simone Mollerke

Nem somente de cor e brilho de glitter se fez os anos 70. A arrogância e a intolerância das diversas ditaduras governamentais que se constituíram nestes anos de chumbo é algo absolutamente passível da lembrança de todos os povos no dias de hoje. Os porões de torturas, a caça aos direitos de liberdade individual, as proibições à tudo o que era contrário aos “donos” dos países, ou seja, seus governantes, são coisas até hoje lembradas por qualquer pessoa que tenha vivido naquela época ou que tenha pelo menos estudado um pouco de história contemporânea. Até mesmo os mais alienados seres que naquela época habitavam a face de nosso planeta sabem do que eu estou falando.

Os 70’s foram sem dúvida uma época áurea, de muitos protestos, muitos sofrimentos, muitas perdas, mas sobretudo, de muitos ganhos. Ganhamos o direito à calça boca de sino, à camisetas em cores psicodélicas, LSD, chá de cogu, festivais de música, Mutantes, Secos e Molhados e muito mais. Isso é o que mais nos lembramos daquela época, embora concorde que tendo nascido eu em 72, não devo ser a pessoa com uma carga de memória viva muito grande, but...

Ganhamos também e neste ponto não sei se muitos concordam comigo, mas pelo menos é o que eu sinto em relação à esta década, um imenso sentimento de saudade. Isso mesmo, saudades. Isso me soa de maneira absolutamente incrível, pois sinto saudades de um tempo que praticamente era um bebê, ou seja, não lembro de muitas coisas, a não ser da morte de Elvis sendo anunciada no Fantástico, num Domingo qualquer e ainda por cima sem o gato do Pedro Bial frente às câmeras. Mas o fato é que sinto saudades sim e durante muito tempo não entendia muito bem. Saudades do que? Da calça boca de sino??? Não, arghs, afinal de contas, antes que qualquer estilista da nossa atualidade a abençoasse de novo, ela parecia-me uma peça um tanto quanto engraçada no vestuário de qualquer época e com certeza, inimaginável de uso. Saudades do que, então?

Saudades talvez dos porões da ditadura. Das mortes mal explicadas. Dos cemitérios clandestinos. Sim, talvez eu sofresse de alguma síndrome de masoquismo exacerbado que me fizesse sentir, inconscientemente, um estranha saudade de paus de arara, choques elétricos, afogamentos, suicídios de segundo andar e etc, mas ainda assim, era-me difícil acreditar que logo eu, que não suporto nem mesmo uma sessão de limpeza de pele sem chorar de dor, pudesse sentir vontade ou mesmo Ter fantasias com fatos como este. Não, sras e srs, isso não seria possível. Pelo menos não era-me aceitável de forma alguma.

Ainda na busca pela razão de minha estranha saudade, formulo outra síndrome: a de pânico à liberdade de expressão. Prá que termos liberdade de expressar-nos? Afinal de contas, certas expressões podem machucar ouvidos e mentes alheias. Cuidado que pode manchar...

Maybe... A gente nunca sabe, de perto ninguém é normal.

Formulei também a síndrome do exílio, ou seja, ser obrigada a conhecer novos países, saindo do país original de maneira clandestina, pois se assim não fosse, poderíamos virar é cadáver clandestino. isso sim. Ou seja, deveria ser mesmo um barato sair do país sem prazo de volta.. Mas... Não, sentia que ainda não era isso, em absoluto.

Durante muito tempo fiquei sem entender esta minha saudade, que com o tempo transformou-se em admiração bizarra. Pois bem, depois de muitos anos e nãos pela frente, comecei a dar-me conta do que realmente me fazia sentir saudades de um tempo que eu absolutamente pouco havia vivido. Em decorrência de toda aquela situação a que éramos expostos, a falta de liberdade, os governos ditatoriais, torturas e etc., desenvolveu-se na população um sentimento muito forte de solidariedade, humanismo e crença. Sim, na verdade, não sentia saudade daquele tempo de torturas e sofrimentos, mas sim, do que isso produzia nas pessoas em geral. Mesmo quem não era ligado à qualquer movimento de resistência, por ocasiões acobertou amigos que eram, muitas vezes arriscando seu próprio direito de liberdade e, inclusive, de viver. Pessoas nos porões de delegacias, mesmo que de facções e ideologias diversas, ajudavam-se mutuamente, numa solidariedade plena e em clara demonstração de que os interesses de um grupo muito maior estavam além de interesses ou ideologias pessoais. Grupos eram formados baseados em ideologias, muitas vezes utópicas, diga-se de passagem, mas ideologias que eram seguidas à risca, com crença e fervor e muitas vezes trocadas pela própria vida de quem nelas acreditava.

Sras e srs, a saudade não é do tempo, mas sim de um sentimento que parece que foi-se com a época finda, sentimentos básicos de qualquer um que entenda-se cidadão. Sentimentos básicos que parecem que são desenvolvidos apenas por aqueles perderam o direito à sua cidadania em algum momento. Sentimentos que atualmente são tão difíceis em nossa moderna vida, cheia de chips e compromissos. Afinal, atualmente não passamos de um número na memória de qualquer computador.

Sim, parece meio demodé, eu concordo, mas eu realmente sinto saudade da solidariedade entre as gentes e de uma ideologia prá viver, além daquela básica de aumentar dia a dia minha conta bancária à qualquer custo... E assim foi... Ou é...

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