Zelador de Almoxarifado
por Giuseppe Zani

Do lado de fora o prédio do almoxarifado parece abandonado. Logo na entrada há um balcão de madeira em avançado estado de deterioração. Na falta de uma placa, alguns arranhões indicam: Recepção.

Por sobre o balcão, tapando um buraco que os cupins fizeram antes da última detetização, encontra-se a máquina. É uma Lettera 32, Olivetti. Engatada nela, uma folha branca. Agora já nem tão branca. Dedos ansiosos soletravam pelas teclas o que seria mais um conto de Valdecir.

Valdecir era o zelador do prédio do almoxarifado e, no tempo de sobra escrevia contos para uma revista erótica. Como a universidade para a qual trabalha pretendia transformar o prédio em faculdade de jornalismo, Valdecir não tinha muito trabalho nos últimos tempos. A maior parte do material já fora transferida para o novo almoxarifado e as obras de adaptação deveriam começar só no fim do mês.

Indiferente a isto, ele continuava a datilografar. Era quinta-feira de semana santa e ele só trabalhava meio turno. De pé atrás do balcão, ele batia forte à máquina. A fita já estava velha, gasta e a tinta não lhe saía tão fácil como antes. A tecla da letra A não existia, e Valdecir era obrigado a bater direto no ferro da alavanca. Seu mindinho esquerdo não agüentava mais.

Tentou evitá-la. "Logo que o gringo entrou no lugar, ouviu um som vindo do dormitório: Mexe, Murilo. Sente? Ficou tudo molhadinh...não. Encharc...droga. Úmido, umedecido. Não, isso não está certo. Em contos eróticos as pessoas não dizem 'estou úmido', todo mundo diz que fica molhadinho mesmo".

Pegou chave para abrir a sala 26B. A 26B ficava bem do lado da 26A. Antes elas foram uma sala só, mas a falta de espaço de distribuição obrigou os técnicos a dividi-las. Agora não havia mais nada na sala 26A além da poeira, da porta caída e do cocô de pomba nas janelas. Mas na 26B foram depositadas inúmeras máquinas datilográficas, todas amontadas umas por cima das outras. Não encontrou nenhuma Lettera. Revirou outras Olivettis, mas muitas não possuíam mais a letra A e, das que possuíam, as teclas tinham dimensões de encaixe diferentes da sua Lettera. Depois de muito arrastar máquinas pela sala, não resistiu e deixou-se cair num canto da sala. O cheiro do seu suor, misturado ao fedor das pombas, tinha um efeito entorpecedor e ele já não sentia os músculos doendo.

Valdecir precisava muito de uma tecla. A história estava toda na cabeça dele e ele tinha que escrevê-la antes que a esquecesse. Ele ainda chegou a parar para pensar qual era mesmo a história. Mas resolveu interromper o pensamento com medo de frustrar-se em meio a empreitada. Apesar de tudo ele haveria de manter as esperanças. O prazo de entrega do texto era segunda-feira, e já estava acabando o expediente.

Desceu novamente à recepção. Remexeu todos os armários e gavetas, mas nada de canetas. A última vez que usara uma foi quando o carteiro deixou um pacote da universidade e ele teve que assinar o recibo de entrega.

Apoiou os cotovelos sobre a mesa e ficou olhando para as teclas e sentiu a ausência da letra A como quem sente o atraso do salário, e isso ele sabia bem como era. A sua sorte eram os pequenos bicos que ele tirava arrumando a instalação elétrica dos vizinhos, trocando canos, pintando uma casa ou outra nos finais de semana. O que não valia a pena mesmo era escrever. Os caras da revista pagavam apenas um valor simbólico, meio que em reconhecimento ao seu trabalho. Reconhecimento mesmo ele ganhava nas cartas dos seus leitores que lhe eram encaminhadas pelos editores. Enfim, ele escrevia por vaidade mesmo.

Valdecir chegou a perguntar-se se o que ele recebia da revista não daria para comprar uma tecla nova. Ficou olhando os números da máquina, como se isso fosse lhe ajudar a adivinhar o valor. Por fim desistiu. O que são números para um escritor, afinal? Foi então que ele teve a idéia. Olhou bem para a tecla do 3, com o seu #. Absolutamente dispensável. Arrancou-a e colocou-a de volta no lugar da letra A. Pronto, podia recomeçar a escrever.

Voltou o carro da máquina e fez cinco Xs sobre a palavra úmido. E tentou melhorar o texto. "Ficou toda molhadinha... humm... Enfia mais a tua mão na minha... Ok, ok, é meio dia.n

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