A matemática será nossa próxima religião.
por Rui Alão

"Às vezes assisto a rituais religiosos e sinto que fico entalado entre o mais austero respeito e uma vontade espontânea de brincar com seus símbolos, de não levá-los a sério. O ritual, que é uma rara oportunidade que se tem de voltar a um mundo em que os símbolos tinham uma força real nas pessoas e nas comunidades, é também e por isso mesmo (pela força que seus símbolos querem evocar) um enxerto de algo estranho ao mundo que experimentamos... É como se fizéssemos um círculo na areia (na areia do espaço e na areia do tempo) e disséssemos para os outros: "o que acontece dentro desse círculo é muito, muito importante." E esse círculo, desenhado na areia como uma brincadeira de criança, inserido no espaço contínuo da praia, cria uma descontinuidade apenas pelo fato de querermos que ele seja mais importante, talvez sagrado. É como uma brincadeira. E é justamente essa semelhança entre rito e brincadeira que me causa essa sensação estranha, da qual não consigo me livrar por mais que passem os anos."

Esta passagem da brincadeira ao sagrado e vice-versa é, realmente, uma das coisas que mais me impressionam desde a meninice, desde as primeiras missas e formaturas. E os momentos em que tudo estava sério e uma das minhas irmãs caía na gargalhada? E minha mãe ia junto; às vezes meu pai e meu tio também. E porque todo mundo ria, já não era mais cerimônia, era brincadeira. E fingíamos estar sérios para os outros mas sabíamos que estávamos rindo por dentro. Ríamos, mas não para desrespeitar nada. Era só o gosto de rir, era o sabor irresistível desse terreno genial, que fica entre o sagrado e o profano.

A fala de Aquiles no livro IX da Ilíada, algumas linhas de Raduan Nassar e muitas de Borges, uma velha senhora usando, distraída, um gesto de menina, todas estas coisas são geniais não por outros motivos, mas porque estão nessa região, entre um mundo e outro.

E de vez em quando as coisas me levam novamente a passar por ela; pena que tão sem aviso...

Noutro dia tentei fazer uma conta de dividir de alguns dígitos "na mão" e simplesmente não consegui. Deu branco. Falei com um amigo de trabalho e ele também desistiu. Depois de alguns minutos de calmo desespero, cheguei à conclusão que a falha é geral: com o aparecimento das calculadoras eletrônicas, as pessoas não fazem mais contas de dividir com lápis e papel. E nunca mais farão! Isso mesmo: você, que pertence à geração que aprendeu a desenhar aquele cotovelinho e colocar o divisor lá dentro e fazer a operação "no papel"... você foi o último de uma série quase infinita de pessoas que fizeram contas de dividir desde a época de Cristo e ainda antes...

Talvez, um dia, daqui a cinqüenta anos, as pessoas aprendam a fazer conta de dividir como quem aprende ábaco hoje, com um certo ar de quem domina um instrumento antigo, lendário e sabe a origem das coisas e das palavras. Talvez ensinem conta de dividir numa seita, com um mestre que conhece os segredos dos números a ainda sabe desenhá-los em pedaços preservados do papel. Os Pitagóricos podem ressurgir. Haverão clipes de conjuntos que deixaram a música tonal e voltaram à modal, compondo segundo uma ordem estritamente matemática.

Talvez a matemática seja nossa próxima religião.

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