Insônia
Por Ariela Boaventura


Os vizinhos berram feito cães.

Errado, sei, cães latem. Mas não posso dizer que meus vizinhos latem, pois berram, já que são inacreditavelmente humanos. Gritam, como se o mundo estivesse a acabar, como se estivessem sendo atingidos por granadas ou mordidas, de cães, quem sabe. Sei que é sábado, e que têm o direito de
berrar o quanto e enquanto quiserem seus pulmões. O que mais me deixa exasperada é saber que não posso pedir para que parem, pois estou debaixo das cobertas, e lá fora faz frio, custei a esquentar meus pés e a quase pegar no sono. Definitivamente não moverei-me daqui, podem colocar esse
prédio abaixo, incendiá-lo: morrerei quente, pelo menos. Me sinto impotente, contra o frio e contra meus vizinhos.

(Chora por pena de si mesma.)

O sono se foi, não pude detê-lo diante dos gritos desses animais.

Passando outro dia em frente ao Hospital de Clínicas, dentro de um ônibus, mirava o nada, quando vi uma árvore, e depois pessoas na parada, esperando. O gerúndio é um verbo que está sempre esperando. Eu vivo no gerúndio, então. Pois vendo aquela gente - as pessoas ficam com uma cara esquisita enquanto esperam alguma coisa -, e dando-me conta da existência de outros seres que
não os humanos, e haviam dois cachorros, por coincidência; várias árvores, o ar, um riacho ao longo da avenida, debatia comigo a incerteza de que aquelas pessoas estavam de fato lá. Existiriam apenas na minha cabeça? Por que as árvores não falam? são vegetais, claro, e vegetais não cultivam a faculdade de falar, ainda mais com estranhos. Poderia escrever aforismos, isso me distrairia e faria passar o tempo, quem sabe até esquecesse os gritos, mas não há onde escrever, o maldito caderno de aforismos está longe da cama. O que eu pensava, mesmo? ah...

Enquanto seguia pela Av. Ipiranga, pessoas desciam e subiam do carro, a paisagem se modificava, mas a idéia prosseguia: o que te garante...? Qualquer um pode ter uma idéia dessas, e enquanto puder guardá-la para si nada há aí de absurdo. O que é só nosso jamais é bizarro, só o senso comum
pode condená-lo. Como eu dizia, estas idéias vêm como um estado de vigília, no qual emergem palavras, situações e imagens que durante a consciência dormem dentro da gente. Admito que é um estado familiar a mim, que dificilmente posso viver em completa consciência. Divago, e isso já trouxe
muitos problemas. Talvez eu inveje essa gente que berra, sim, gostaria de estar ali, junto deles, compartilhando em voz e alegria ou ódio ou indignação ou sabe lá deus o que, enfim, berrando na madrugada, sem preocupar-me com quem dorme e ainda menos com o sono, com o frio, com as
cobertas nas quais agora me aninho.

Estou cansada, e sinto os pés novamente gelados. Que raiva, por que não calam a boca? (Suspiro.)

Filosofar é tarefa de quem não tem contato com o preço do pão. Lembro que no dia do ônibus quase cedi à tentação de esquecer a idéia da dúvida sobre as coisas existentes, e fixar somente o mundo visível e legal. É mais fácil viver assim. E o que faço com meus pensamentos, com as dúvidas? Quando eu era criança, recordo que elas, as dúvidas, já estavam comigo, e costumava espiar pela fechadura se os móveis continuavam no mesmo lugar quando saía de uma peça. Pode ser que qualquer criança faça isso. Não importa. E gostava de quando me machucava, pois então tinha certeza de existir. Uma idiotice que demorei a largar, admito. A dor foi muito usada, de verdade, para que eu tivesse certeza de que vivia, mesmo já adulta. Até que uma certa vez fiz um belo talho no pulso tão profundo quanto o tamanho de uma gota - ou seria um pingo? - e me acudiram com um médico. Isso passou, evidente, depois da terapia.

Talvez eu preste muita atenção a meus pensamentos. Não se pode levar nada muito a sério. Muito menos a vida, digo, a realidade. Vou mudar de posição, quem sabe o segredo do sono esteja aí, no decúbito dorsal.

Decúbito é palavra estranha, mesmo. Bruços é pior, parece algo de bicho. Não vou lá reclamar, não quero saber de mais nada, quero paz. Quero meus pés quentes e um pesado sono, que me faça roncar - será que eu ronco? - como um urso, mais que isso, como um monstro. Que meu ronco seja mais barulhento que os gritos desses bucéfalos.

Eles berram feito cães. Tanto faz. Que berrem, eu não posso fazer nada, a não ser escutar, essa função involuntária do corpo, ou ir lá e dizer que parem; ou talvez berrar junto, em coro. Poderia chamar a polícia, se fosse o caso. O caso é que não tenho controle sobre os vizinhos. Sobre nada. Não posso fazer com que parem de berrar, assim como não há maneira de fazer com que as árvores falem ou ter certeza da existência de tudo isso. (Tateia no escuro.) Ainda tenho um calmante, posso dormir mesmo com o mundo desabando. Que desabe, que se foda, que se fodam. A propósito, se fodessem não fariam tanto barulho.