Black Power

Por Fabiano Goldoni

Na festa do amigo Gérson, Fernando não parava de olhar para a empregada que servia os salgadinhos. Ele, um abonado estudante de engenharia, de mãe arquiteta e pai capaz de gastar trezentos reais num almoço, secava ela sem descanso. A vítima era uma moça negra, de nariz fino e de mais ou menos um e sessenta de altura. Passava com muita graça pela sala, segurando a bandeja pelas alças. Ia entre as pessoas, que notavam apenas as coxinhas de galinha e os pastéis de palmito. Só Fernando olhava estritamente pra ela. Seguia com os olhos como se fosse um urubu a esperar a vítima dar o último suspiro.

Gérson encosta em Fernando meio indignado: - "Tu, hein? Encho a casa de peteca e tu só falta lamber a Dalva!". Fernando bate nas costas do amigo e fala entre um gole de Miller e outro: -"Cara, até parece que tu não me conhece."

Fernando vai apressado até a porta que dá pro corredor da cozinha e se encosta, trancando a passagem. Dalva se aproxima com os pés doendo e a bandeja vazia, vê Fernando e faz um jogo de corpo para não esbarrar nele. Ele a segura pelo braço e aproxima o rosto no ouvido semicobreto pelo lenço branco. Sorrindo ele assopra: -"Quer ganhar cem pila?" Com uma força desproporcional ao seu tamanho miúdo, Dalva arranca a mão de Fernando do seu braço e começa a gritar desesperada como se visse o próprio demônio com chifre e tudo: -"Filho da puta! Filho da puta, tarado!" E solta um tapa na cara dele que é ouvido até dentro dos banheiros.

No outro dia, Gérson indignado com o amigo, contava tudo o que os outros convidados comentaram depois que Fernando fora embora. Os dois caminhavam sem rumo no Parcão. Fernando, que não tirava as mãos dos bolsos, só dizia que ele era assim: gostava mesmo era das mulheres negras. O amigo sabia disso e se recusava acreditar em tal fantasia, que ele pessoalmente tratava por doença: -"Tu nunca pensou em procurar ajuda; um psiquiatra?" E, por um momento, Fernando fica na dúvida: -"Tu acha isso tão errado assim?" Gérson explica, explica e usa todos os argumentos pra convencer o amigo, de que ter uma preferência por um tipo de mulher é até razoável, mas escolher pela cor é absurdo. Fernando dá de ombros, mas internamente se convence em procurar ajuda sem contar pro amigo. Quando chegou em casa, foi direto às páginas amarelas do guia telefônico, pois não queria indicação de ninguém. Fernando sabia que isso iria resultar em perguntas que ele não estava afim de responder.

Decidiu por um, cujo consultório era num bairro de classe alta e pelo nome que o agradara: Dr. Jorge S. Miranda. Marcou dia e hora, sempre pensando: "Bom, vou só pra ver qual é que é.", tentando se convencer de que não ia dar em nada e que poderia ser tempo perdido.

Um dia antes da consulta, ele volta de uma festa no Dado Bier, às seis da manhã. Foi uma daquelas noites sem pegar nem resfriado. Desanimado com a falta de uma companhia feminina, ele anda pela cidade olhando para os bares, que ainda estão abertos, a procura de alguma coisa que ele não sabe bem dizer ao certo. Ele anda, anda, até que acaba na Farrapos. Ele vai devagar, olhando as prostitutas e os travecos que, a essa hora, já estão mostrando até o pau em busca de clientela. Observa a pobreza daquelas mulheres e imagina todas elas cobertas de cocô, deixando um rastro de fezes pelas esquinas.

De repente ele e vê aquela imagem irreal para aquela hora da manhã e pára o carro no meio da rua. É uma mulata de quase um e oitenta, a própria rainha do carnaval. Se um rei momo, de lantejoula e tudo, dobrasse a esquina e colocasse a faixa de Rainha do Carnaval, ninguém estranharia. Ele baixa o vidro e, com o olhar vitrificado de quem cheirou até a poeira de trás da TV, pergunta: -"Quanto é?" Ela observa o Tag Heuer no pulso dele e diz sorrindo: -"Duzentinhos." Fernando abre a porta: -"Entra. Entra."

Foi a meia hora mais feliz da vida sexual de Fernando. A vontade dele era de tirar aquela mulher da rua para fazer dela a sua namorada. E ao mesmo tempo que ele se imaginava andando de mãos dadas com ela, pensava na consulta que teria e dizia pra si mesmo: -"Isso não é doença. Não pode ser."

Cinco minutos antes da hora marcada, ele entra na sala de espera do consultório, vê a secretária sentada atrás de uma escrivaninha de aço escovado e se identifica. A secretária era, o que os antigos chamavam, "de parar o trânsito". Loira de grandes olhos verdes, capazes de hipnotizar até um cego. Logo de cara ele pensou: "Eu comia essa secretária." Mas, dois segundos depois, ele caiu em si e se deu por conta que o desejo dele pela secretária não era em nada parecido com o que ele sentiu pela empregada da casa do Gérson, que era na sua opinião até menos bonita do que a secretária.

Relaxou na poltrona e ficou pensando na noite anterior. Ele estava completamente seguro de que era um sujeito absolutamente normal. Ele se imaginava um chato de tão normal.

Fernando já estava convencido de que não precisava de médico nenhum. Ali mesmo na sala de espera ele se deu conta de que ele tinha uma preferência e isso não tinha nada de doente. De repente, a porta da sala do médico se abre e ele toma um susto: o médico era negro. Agarrado aos braços do sofá, ele começou a se sentir perseguido. O doutor, percebeu o espanto. Sendo o único negro da turma de medicina, ele já estava acostumado com essas reações.

Fernando entrou na sala, deitou no divã com os músculos rijos de nervosismo. E no seu otimismo solucionador de todas as dúvidas, ele concluiu: -"Se é negro, é claro que ele vai me entender duzentas vezes mais do que um branco." Relaxou e começou a contar um por um os seus casos com mulheres negras e todas as suas conclusões entorno sobre si mesmo. Dr. Jorge escutava com o interesse de um padre no confessionário, não disse nada nem suspirou muito alto pra não atrapalhar.

Em um certo momento, Fernando interrompe dizendo que uma hora já havia passado, o que significava o fim da consulta. O médico fascinado pelo problema do paciente novo pede pra que ele fique, já que não há mais ninguém agendado para aquele dia.

Fernando deita novamente a cabeça, solta os braços e suspira fundo: -"O senhor acha que eu sou normal?"

-"E o que não é normal?" Decreta o médico em forma de pergunta e batendo com as mãos nos joelhos, pegando impulso pra se levantar da cadeira.

Fernando vira-se sem entender: -"O que o senhor quer dizer com isso?"

Com a mão espalmada no peito o médico amansa a voz: -"Eu entendo o seu desejo. Ele vem da diferença. Ele está no contraste da cor. É isso que você deseja. É o diferente, né?"

-"Pode ser..." Responde Fernando, pedindo mentalmente um tempo para pensar.

-"Eu acho muito bonito esse contraste, compreendeste? Já saí com mulheres da cor dessa camisa aqui ó." Aponta para a camisa branca sob o terno cinza-escuro.

Numa inversão de papéis, Fernando fica escutando enquanto o médico fala dos seus casos e do próprio desejo por mulheres brancas. Em determinado momento, ele chega a ter um tom confessional: -"Vou te dizer uma coisa: eu não resisto àquelas veias aparecendo em volta dos mamilos."

Dr. Jorge falou sobre si mesmo durante quase uma hora, muitas vezes ficou de costas para o divã, olhando pela janela. Até que, sem mais nem menos, Fernando interrompe e pede pra ir ao banheiro, já se levantando.

O médico senta-se e fica esperando de pernas cruzadas. E esperou por mais de 15 minutos, quando resolveu bater na porta imaginando algum problema gastrintestinal. Fernando não respondeu. Bate mais forte e chama pelo paciente que novamente não responde. Ele encosta o ouvido na porta e escuta um gemido. "Socando bronha!?" Deduz sem saber o que fazer. Nervoso ele insiste: -"Fernando, eu preciso fechar o consultório. Tenho um compromisso." E nada. Só se ouvia aquele gemido contínuo. Então, na sua autoridade de médico, ele decide mexer na maçaneta que cede e abre a porta.

Em 26 anos de profissão, Dr. Jorge nunca tinha ouvido falar, muito menos visto, cena igual em um consultório: Fernando estava nu, de quatro no meio do banheiro. Ele chorava e tremia como um cachorro doente. O médico ali, em pé e sem entender a situação foi simplesmente óbvio: -"Mas o que é isso???"

Fernando num engasgo de choro fala baixinho: -"Doutor, eu quero que o senhor me coma."

Hipnotizado pela cena, o médico não sai do lugar. E o silêncio constrangedor que se faz entre os dois é interrompido pelo grito que invade a sala e os corredores do prédio inteiro: -"Me come, Doutor! Me come!"

 

19/08/00