Cronicamente Gramado

Por Marcelo Firpo

Devia ter uma lei que impedisse as pessoas que não entendem muito de um determinado assunto de escrever sobre o mesmo. Como não tem, acho que posso escrever sobre o 28o Festival de Gramado sem problemas. Apesar de eu mesmo já estar na minha 28a edição, nunca tinha subido a Serra pra ver a mostra, mas isso porque eu tava sempre trabalhando por esta época e achava que não valia muito a pena ir só para o final; queria acompanhar um Festival de Gramado inteiro, vendo a maior parte dos filmes, escolhendo meus favoritos, essas coisas. Esse ano dei a sorte de, justo na semana do Festival, estar naquele limbo confortável entre dois empregos, depois de sair de um e antes de começar no outro, e foi a chance que eu precisava. O que segue é uma série de impressões sobre coisa toda, impressões de alguém que a) nunca tinha ido, não custa lembrar e b) conhece meio de longe a, infelizmente não me ocorre outra palavra, cena cinematográfica gaúcha:

Segundo Dia:

Graças à minha rescisão de contrato, só consegui chegar em Gramado na noite de terça-feira. Além dos filmes da programação oficial da noite de abertura, perdi também a mostra de Super 8, que foi de tarde. Pelo menos cheguei a tempo de ver a segunda noite da competição, com os curtas brasileiros "Retrato do Artista Com Um 38 na Mão", "Irmãos Willians", "Tepê" e "A Cilada Com 5 Morenos", mais o longa peruano "Pantaleón y Las Visitadoras". O "Retrato..." conta a história de um artista em crise criativa e obcecado pela morte. Achei legal, cabeçudo mas bem resolvido. Os "Irmãos Willians" é uma animação de massinhas com um humor negríssimo, bem interessante, mostrando a trajetória de 13 irmãos gêmeos que nascem numa favela e vão morrendo um a um. Como as pessoas mais chiques costumam dizer, me caguei de rir. "Tepê" foi legal, também, a história de um cara que pega uma corrida táxi com Deus ao volante, ótimos diálogos. "A Cilada..." eu achei fraquíssimo, quando disseram na apresentação que era um filme abordando o rasqueado, um ritmo tradicional matogrossense eu já fiquei interessado, mas era bem fraquinho, coitado. Depois disso rolou "Pantaleón y Las Visitadoras", baseado no livro de mesmo nome do Mario Vargas Llosa." Filmaço: Pantaleón é um oficial exemplar do exército peruano designado para a insólita missão de organizar e gerenciar um bordel na Amazônia, para atender aos impulsos dos soldados sediados na região e reduzir o altíssimo índice de estupros. Menção especial para o personagem da "Colombiana", uma das visitadoras, mais que uma mulher, um verdadeiro arquétipo. Nessa noite também teve a homenagem ao Paulo José, emocionante, que agradeceu com um discurso de improviso bem esperto, do qual destaco a frase "Nós, os brasileiros, fazemos o melhor cinema brasileiro do mundo."

Terceiro Dia:

Tudo começou com "Cão Guia", um curta muito legal que aborda a relação de amor e ódio entre uma cega e um guri que se conhecem na rua. Redondinho. Depois teve "Santitos", um longa mexicano sobre uma mulher que sai em busca da sua filha falecida, numa atmosfera cheia de realismo mágico. Começou bem, mas depois esfriou um pouco, apesar do ótimo trabalho da atriz principal. Depois disso teve "O Cavaleiro Jorge", do Otto Guerra, traço bem legal, final um pouco abrupto, e o longa "Estorvo", baseado no livro de Chico Buarque. Deve-se dar um desconto pelo fato de ter sido o último filme e etcetera, mas sinceramente não fez a minha cabeça, ainda que muita gente tenha curtido. Nessa noite rolou também a entrega de prêmios do Super 8, que a cada ano cresce em importância, com destaque para "Só Algumas Cenas Que Fizemos Pra Vocês" ou algo parecido, que levou os principais.

Quarto Dia:

Começou com os curtas "Aldeia" e "Passadouro". O primeiro achei bobo, um missionário ensinando os Dez Mandamentos para uns índios, que não vêem o menor sentido na coisa toda, fica melhor descrito do que visto. O segundo é uma reflexão sobre os efeitos da bobalização nos recônditos do sertão, muito bonito, sem diálogos, enxuto. Depois teve o longa "Quase Nada" na mesma levada, 3 histórias de amor e morte no interior do interior do Brasil. Legal, especialmente o primeiro episódio, "Foices". Na sequência rolou o curta "Sargento Garcia", baseado em Caio Fernando Abreu, com uma ótima interpretação do Marcos Breda, e o longa uruguaio "El Viñedo", que eu tava na pilha de ver por ser um policial, mas era daqueles que você já sabe quem matou logo início, tudo muito convencional, parecia o piloto de uma série de TV e talvez venha mesmo a ser.

Quinto Dia:

Acordei um pouco mais cedo pra ver, às 16:30, fora da mostra oficial, "Cronicamente Inviável, uma sátira sobre a realidade sócio-econômica brasileira, na qual ninguém se salva. Tem cenas fortes, ainda que eu tivesse ido preparado pra coisas bem piores, um clima de irrealidade e um texto bem inteligente. Uma porrada com elegância. Na noite rolou o curta "Pedaços de Um Pedaço" documentário sobre a juventude dos anos 70, meio chato, e o na minha humilde opinião sublime "El Mismo Amor, La Misma Lluvia". Apesar do nome pra lá de cafona, este longa argentino conseguiu balançar minha predileção pelo "Pantaleón...". "El Mismo Amor..." é uma puta história de amor, um "Harry and Sally" com mais neurônios e aquele humor, aquela ironia, tipicamente argentinos, que nós gaúchos entendemos tão bem. Um filmaço, texto maravilhoso, boas interpretações, como diriam os hermanos, um assombro. Só uma palhinha do nível dos diálogos: primeiro encontro entre a mina e o cara principais, ele é um escritor em princípio de carreira, ela já leu alguns contos dele e resolve fazer aquele agrado básico: "Gostei muito. Você tem algo do Cortázar...". Resposta do cara: "Sim. Um pôster." Depois teve a exibição de "Outros", curta gaúcho que é um longo plano sequência pela Osvado Aranha, mostrando vários personagens esquisitões. Bem arriscado, mas funciona que é uma beleza, é um filme fresco, não no sentido de frescura, mas no sentido de frescor, de ser alguma coisa nova, feita com gana, que eu imagino que seja comum a toda esta turma que tá vindo do Super 8. Depois teve o longa "Eu Não Conhecia Tururu", cujo título me provocou uma expectativa boa. Parafraseando Dorothy Parker, tudo ia bem, até entrarem os créditos. Não sou de falar MUITO mal das coisas, mas neste caso vou ter que abrir uma exceção: o filme é de uma obviedade que agride, os personagens se resumem a clichês do tipo "Mulher Apaixonada Por Cafajeste", "Amigo Gay Que Vai Acabar Se Estrepando Porque Gosta Muito da Noite", "Velha Senhora Que Não Assumiu Seu Grande Amor no Passado" e "Filha Intelectual Que Na Verdade É Lésbica". O Troféu Tiro no Saco, que a princípio eu tava dando pro "Estorvo", fica com esse.

Último Dia:

Rateei e não vi a primeira parte da mostra de filmes gaúchos de 16 mm, mas na segunda tarde de exibições eu tava lá. Gostei muito de "Branco", sobre um guri cego que aprende a sair debaixo da asa da mãe, "Outros" rodou de novo com seu prestígio intocado, gostei também de "Quem?", roteiro fechadinho, "Fora de Controle" eu achei meio disperso e "A Verdade Às Vezes Mancha", que despertou polêmica com a sua proposta de desconstrução, eu curti: é uma doideira do caramba, mas é uma doideira instigante. Na noite rolou "Eu, Tu, Eles", bonito a não mais poder, grandes interpretações de Regina Casé, Lima Duarte e Stênio Garcia, e com uma ótima trilha sonora, feita por um cara novo, tal de Gilberto Gil.

Depois teve a entrega dos prêmios, que eu não vou ser sacal de enumerar um a um. "Pantaleón..." levou um carrinho de Kikitos, "Outros" e "Tepê" se deram bem, "Estorvo" levou prêmios mais técnicos e houve vaias quando foi anunciado o nome de Maria Zilda, do "Eu Não Conhecia Tururu" pra dividir o prêmio de melhor atriz com uma cubana, mas eu juro que tava quietinho.

Pra terminar, algumas notas soltas:

O Prêmio Guilherme Caon de Onipresença ficou com o ator Maurício Branco, se é que ele é mesmo só um.

Quando as pessoas iam receber os prêmios, tocava Prodigy, não consigo pensar em nada mais latino e brasileiro.

Sugestão pras comissões organizadoras dos próximos festivais: colocar um mastro na frente do Palácio dos Festivais e pendurar nele as pessoas que insistirem em deixar os seus celulares ligados durante as sessões. Os homens pelas bolas, as mulheres pelas tetas.

As duas frases mais legais que eu ouvi ao longo destes seis dias. A primeira, de uma guriazinha caçadora de autógrafos pra outra, passando perto de mim: "Aquela mulher deve tá mentindo. O que é que o Leonardo diCaprio ia tá fazendo aqui?". A segunda foi uma mulher que gritou do meu lado "OLHA LÁ O SIDNEY MAGAL!" Fui olhar pra onde ela apontava e sim, lá estava ele, Felipe Camargo.