Outros, isto é, nós

Por Luís Augusto Fischer

Vi no sábado retrasado o curta de Gustavo Spolidoro chamado "Outros". Passou sábado de tarde - ia dizer "no 12" ou "na TV Gaúcha", mas é RBSTV. Essas coisas de quem tem mais de 30 anos. O senhor viu? Sei, estava fazendo outra coisa. Visitando a EXPOINTER. Levando a patroa no súper. O guri no futebol.

Não importa. O certo é que vi e fiquei entusiasmado. Um curta de seus 12 ou 14 minutos, que desde antes já tinha me chamado a atenção: todo ele é uma só tomada de câmera, todo o tempo, sem cortes ou montagens, envolvendo umas dez cenas, todas passadas na Osvaldo Aranha, rua do Bonfim, bairro de Porto Alegre. O carinha que segura e opera a câmera deve ter tido um trabalhão pra entrar e sair de carros e ônibus, para acompanhar cenas variadas.

A brincadeira se articula pela idéia de acompanhar cenas sucessivas, enganchadas meio ao acaso, o acaso da vida, o acaso da rua. Começa numa van, com o motorista filosofando com uma guria sobre as virtudes de fazer cocô, ao som de uma musiquinha meio sobre o estilo New Orleans, se não me engano. Papo vai, o carro pára na sinaleira, e a câmera desce e passa a seguir o papo de dois carinhas, um radical querendo explodir o mundo, outro mais manso, com destaque para o tema do relógio dos 500 anos. A coisa se interrompe para dar lugar a um índio que faz sinal de positivo, a pedido de alguém. Segue cena de assalto a ele, assalto que depois se repetirá com um casal de namorados em papo-cabeça sobre o Dogma 95, aquele pacto de alguns cineastas na Suécia (ou seria na Dinamarca?). A guria do casal é ferida, e os dois seguem para o Pronto-Socorro, dentro de um táxi, no qual há um diálogo estranho, porque a guria mistura a pressa de chegar ao hospital com a de chegar em casa para ver um filme, e há uma intervenção meta-narrativa, com aplausos de platéia de show.

(Estou contando de memória, e é provável que faltem ou sobrem coisas.) Na entrada do hospital, o conto, quer dizer, o curta, passa a acompanhar um pai carregando na cacunda a sua filhinha também papo-cabeça, tipo 5 anos, falando sobre a separação do casal que gerou aquele serzinho, e os dois cruzam a Osvaldo (a câmera acelera o andamento do ritmo, ficando meio ridículo o jeito dos dois). Chegam a um bar do qual saem duas gurias, jovens descoladas, que entram num ônibus de linha - a câmera entra também, pela porta da frente. As gurias são filmadas em slow-motion, num efeito daqueles túnel do tempo. Param em algum lugar no corredor e se beijam na boca. Encosta uma senhora meio pobre, problemas de saúde dela e do marido, que discorre sobre sua miserável vida. A última cena volta à van original, e o papo do motora com a mina segue e se conclui, retornando a música aquela, ao violão com clarinete, se não me engano.

Bacana, tenso, envolvente. Tanto que vi apenas uma vez e fiquei com esse monte de cenas na memória. Em parte porque ver a cidade da gente, a rua que a gente conhece, tudo isso se gruda na impressão - tanta cena estrangeira a gente vê que nem parece ser possível que a nossa terra ganhe representação na tela. E pode sim senhor.

O curta, não quero dizer que seja perfeito. O papo do cocô, aquela aceleração do pai com a filha, aquele slow-motion do ônibus, o beijo de língua estalada das duas gurias, tudo isso me pareceu meio pseudo, talvez meio adolescente, feito birra que a gente quer descontar quando publica o primeiro livro ou faz o primeiro filme (não sendo este o primeiro do Gustavo). Mas o certo é que ali está uma idéia instigante transformada em filme interessante, uma coisa viva e saltando da tela para a vida do espectador, depois de ter sido recortada da vida para a tela.

Fico imaginando o trabalho que deu a produção do filme, mais o ensaio dos atores e de todo mundo que se envolveu para fazer aquilo ali sem cortes, num enredo que deve ter envolvido mais de vinte pessoas em ação na tela e sabe-se lá quantas mais atrás das câmeras. Mas é certo que funcionou e muito bem.

Conversei com o Aníbal Damasceno Ferreira, entendido no metiê, que deu lá suas opiniões (não as reproduzo aqui porque são dele, e ele tem escrúpulos quanto a suas idéias). Mas ele lembrou que "Deu pra ti" e "Verdes anos", filmes que a minha geração viu com o mesmo fervor quase vinte anos atrás, estabeleceram um patamar inédito para o cinema local. Foi talvez a primeira vez, a ainda durante a ditadura, que recém começava a caducar, que vimos Porto Alegre em cena. Foi uma experiência estarrecedora, sensacional, como espero que seja agora este filme do Gustavo, que deve passar mais oitocentas vezes até a gente terminar de curtir. Detalhe: a geração que fez aqueles filmes, que é cronologicamente a minha, deu aulas para a geração do Gustavo.

E não custa dizer de novo, ao modo de pegação de pé: a exibição dos curtas gaúchos está acontecendo meio por acaso, porque a RBS tinha um furo na programação e resolveu aceitar a sugestão, velha de 15 anos, de passar os caras daqui. Pois ela começou a passar e o resultado foi que deu certo, surpreendentemente para os patetas de várias idades que comandam a mídia eletrônica daqui (não são todos patetas, claro, mas não são tão poucos). Deu certo porque as pessoas são saudáveis e querem ver coisas que lhes digam respeito, para além dos enlatados engulhentos e vomitantes que ocupam quase todo o cenário. E não custa repetir: enquanto isso, a TVE deste governo tão ansiosamente esperado por tantos de nós, TVE que a gente esperava que ficasse inteligente, apesar de algumas iniciativas continua surda, muda e cega para a arte que se produz no estado, preferindo, na escassa produção local, botar artesanato e relatos primários sobre a vida trivial de gente gaúcha.

Vou esbravejar um pouco mais: por que raios é tão difícil entender que a arte é mais do que decalque da realidade? E que a arte é mais forte do que a realidade quando se trata de tentar entender a realidade? E por que tanto medo de enlouquecer um pouco, chamando os artistas para dentro da TVE e deixando os caras pensarem e fazerem a televisão que corresponda ao estágio relativamente desenvolvido da cultura local? Por que é tão difícil entender que o melhor para as gentes todas, do interior profundo ou das cidades, é puxar o debate para cima, sofisticando a produção e deixando correr livre a criatividade, para errar e para acertar? Estaremos tão enfeitiçados pelo padrão corretinho da Globo que não sabemos mais que jornalismo é mais do que carinhas simpáticas, e que inclusive pode ser feito por caras feias, tipo as da vida real? E que esquecemos que arte, inclusive na televisão, é mais do que artesanato e mais do que ideologia, porque ultrapassa a ideologia?