Pirâmides debaixo da cama

Por Roberto Tietzmann

Aproveitando o gancho do texto do Álvaro Magalhães no Não 70, pergunto: vocês dormiram com pirâmides debaixo da cama nessa década? Vermelhas, amarelas e azuis? Moveram objetos com o auxílio de geradores psicotrônicos? Sério!! Leram dezenas de matérias sobre paranormalidade de Elsie Dubugras na Revista Planeta? Chamaram os mortos de "desencarnados"? Eu fiz tudo isso. E antes de terminar o primário.

Antes que apaguem umas velinhas a mais para mim, informo que não completei 20 anos nos anos 70. Nasci neles. Família cristã. Batismo e coisa e tal. Só que meus pais resolveram revogar a educação hiper católica que receberam na juventude, mantendo apenas os princípios básicos (suficientes para dar risada no "Dogma" do Kevin Smith). Em busca de novas perspectivas democráticas de fé, criaram -e me criaram imerso em- uma salada de apóstolos, incas, maias, astecas, santos, parapsicologia, discos voadores, deuses astronautas, pirâmides, Carlos Castañeda e tudo o mais que poderia ser pauta do Padre Quevedo. Que, aliás, também dava seus pitacos na revista Planeta.

Não sei bem como começou. Mas sei que quando me dei conta, já acreditava piamente naquilo tudo. Íamos à casa de meus avós e meu pai me mostrava um catecismo que usara quando criança, um livrinho fino, preto, com capa de plástico imitando couro. Pecados e mais pecados catalogados no livrinho:

- E essa oração tirava 300 dias de alguém no purgatório.

- O que é purgatório, pai?

- Uma coisa que os padres inventaram para tirar dinheiro das pessoas.

- Até o padre Inácio? Ele tem um Fusca tão velho...

- Não, guri! Os padres da idade média!

Desta idade só sabia que era muito, muito velha. Mas mais antiga que ela eram os antigos egípcios. Que sabiam os segredos do mundo, perdidos desde então. Um dia volto da escola e meu pai está com uma pilha de cartolinas coloridas na mesa da cozinha. Desenhando quadrados concêntricos nelas e cortando pirâmides. Achei bonitas, coloridas.Ele explicou:

- Os egípcios eram tão sábios porque dormiam dentro de pirâmides.

- Todos eles? Como só tem três pirâmides hoje?

- Só os mais espertos dormiam nelas, guri!

- Ah.

- As pirâmides serviam para concentrar energia. E para isso estou fazendo essas aqui.

Tinha dado na Planeta daquele mês. Vermelha era para vitalidade. Amarela, inteligência. Azul, bom senso ou algo assim. As qualidades das pessoas eram garantidas e amplificadas por pirâmides de papelão colocadas debaixo da cama.

- Se o interior estiver coberto de papel alumínio o efeito é maior ainda! - assegurava meu pai.

- Então me dá a Pritt. - arrematei.

As aulas de religião pareciam definitivamente aborrecidas perto daquilo tudo. Nunca esqueço durante minha catequese quando a catequista pediu para ilustrarmos uma historinha onde Jesus fazia um enfermo se curar ou algo assim. Desenhei um Jesus emitindo raios de energia como um super-herói ou os discos voadores da revista faziam. Pra quê!

- A senhora viu o que seu filho fez no desenho? - perguntou a insossa mocinha à minha mãe, chamada especialmente à secretaria da casa paroquial.

- Eu desenhei Jesus mandando energia! - entrei no meio.

- Estou falando COM SUA MÃE.

- Qual é o problema? - perguntou, calma, minha mãe.

- Seu filho desenhou Jesus errado.

- Ele tem barba! Não está errado!

- Psht, guri!

- Por que não pergunta a ele por que fez isso? - completou a mãe.

Contrariada, a mocinha assentiu:

- Por que fez isso? - Jesus não ia curar o doente?

- Sim.

- Então tinha de dar energia a ele.

- Hum. Curá-lo.

- Taí. Mandando raios de energia para o doente!

- Mas não é assim que Jesus faz.

- Então como é que ele faz?

A mocinha sem sal ficou sem resposta também. Para apaziguar os ânimos, e me salvar do fogo do inferno, tive de confesssar isso. E fazer o desenho de novo, ao que o repeti igual. Só que sem os raios. E ela gostou. Mas esse não foi o único atrito que tive por conta de minha criação espírito-esotérico-sideral-ecumênica.

Às vezes, Allan Kardec era tão citado que parecia membro da família. Reencarnação era um fato, não uma hipotese. Se não acreditasse no espiritismo, tinha o Budismo, o Hinduísmo e outros 257 ismos para me convencer. Ficava olhando para os coleguinhas na sala e pensando o que eles tinham sido em vidas passadas. Não chegava a conclusão nenhuma, nem a meu respeito. Imaginar historinhas era mais interessante que saber. Mas isso dava margem a discussões surrealistas no seio de minha família.

- Odeio tabuada! - afirmava, convicto, sob o olhar preocupado de meus pais.

- Será que isso tem a ver com vidas passadas? - perguntava minha zelosa mãe.

- De repente o guri tem um carma com números. - completava meu pai.

As provas bimestrais renovavam minha fé cristã nos estudos e dissolviam qualquer carma, trauma de vida passada, bloqueio espiritual ou chakra do aprendizado bloqueado por engano. Ficava vesgo de estudar matemática. Não é por acaso que escolhi comunicação quando cheguei à faculdade! E isso tudo aconteceu antes de minha adolescência. Anos, muitos anos antes. O início do fim do misticismo na minha vida foi quando passei a ouvir 300 vezes por dia o "Rocket to Russia" dos Ramones e resolvi não acreditar mais naquelas historinhas sem questioná-las. E percebi que muitas delas tinham, na verdade, a consistência de pequenas ficções. Que dependem tanto de quem as conta quanto de quem as ouve para serem críveis. Mas muita gente acredita. Meus pais ainda compram a Revista Planeta, embora hoje não acreditem mais em tudo que lêem. Portanto, nada de pirâmides debaixo da cama hoje em dia.