Amigo-secreto, absinto e subversão

Caroline Chang

cacachang@hotmail.com

Há algumas semanas, surgiu o assunto no e-group da minha turma da faculdade: como, quando será a festa de final de ano deste ano? (Todos os anos tem a festa, com amigo secreto e tudo, sagradamente no mesmo local, tendo falhado apenas um ano, desde 1994). A questão era: se o local era o mesmo, as pessoas, basicamente, as mesmas (ao ponto de que eu, por exemplo, já tirei a mesma pessoa várias vezes, no amigo secreto), o que faríamos de inovador neste ano? Assim, só para não deixar a festa entrar na rotina total? Todos responderam em uníssono (se é possível um uníssono via e-mail): absinto!

Sim, todos queriam experimentar a famosa fada verde, mãe de Rimbaud, Verlaine, Van Gogh e outros. Jornalistas, publicitários e RPs, ditos formadores de opinião, estavam dando tudo para degustar o tal licor feito de artemísia, genciana e outras ervas, ainda que digam que o absinto vendido hoje em alguns países da Europa não seja mais como o do século 19 e da década de 20 (dizem que o componente tóxico e alucinógeno não está mais presente). Já que a importação da dita bebida havia sido proibida, incumbimos os nossos expatriados em São Paulo de encontrar e trazer umas garrafas da bebida "em off". Juro, os colegas mais exaltados já estavam até fazendo furinhos com broca em colheres tamanho sobremesa, para tomar o absinto da maneira considerada mais charmosa por muitos - derramado sobre um torrão de açúcar suspenso em uma colher de prata com furinhos.

Eis que não se conseguiu uma só garrafa - nem uma meia garrafa! - do absinto no mercado negro paulistano. Indignação total. (OK, vá lá que talvez os expatriados em São Paulo não sejam as pessoas mais embrenhadas no consumo clandestino).

Conto tudo isso porque esse episódio do absinto me despertou uma reflexão. Ora, todos sabem que a importação brasileira do absinto foi proibida depois que a equipe do Fantástico fez uma reportagem colocando na parede certos burocratas, levantando questionamentos sobre a legalidade do teor alcóolico da bebida (como se o fato de o álcool fazer mal para a saúde fosse descoberta científica recente). Tive de me lembrar daquele episódio, não sei em que ano da ditadura, de não sei qual jornalista da Folha de São Paulo que publicou um texto falando da música Apesar de Você, do Chico, dizendo que o virtuose conseguira driblar a censura prévia, fazendo a canção parecer uma música de dor-de-cotovelo amoroso quando, na verdade, era dirigida ao Médici. Como todo mundo sabe, a música, depois do texto do tal jornalista, foi proibida.

O que quero dizer é que, por razões várias, que não pretendo aqui esquadrinhar à exaustão, a subversão brasileira se auto-boicota. A não ser que tenha dinheiro no meio, como tráfico de drogas, que não é uma subversão, é um negócio, comemos o próprio cauda, como aquela serpente mítica. Para que colocar holofotes nas entrelinhas da letra do Chico? Para que forçar a proibição do absinto? Aliás, acho que não temos subversão no Brasil (salvo casos isolados, que não geram um movimento): subversão que se sabota não tem o direito semântico de se denominar subversiva. Não é por nada, que, como apontou um amigo meu, o Brasil nunca teve nenhuma revolta política de cunho popular e de abrangência nacional (esse mesmo amigo deixou aberta a possibilidade de esta vaga ser ocupada pelo MST). Se para tomar absinto, que poderia ser classificado entre os prazeres da carne, não nos organizamos, o que dirá por causas menos imediatas?

Enfim, como diz o Caetano, "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". Cada povo também. Não temos guerra, assim como não temos vanguarda que não seja importada, e nem mesmo absinto importado. Aquela frase (De Gaulle? Churchill?) de que, às vezes, para se fazer a paz é preciso fazer a guerra, não se aplica ao Brasil. Se para se fazer a paz é preciso fazer guerra, ficamos com uma proto (ou pseudo, é melhor) paz.

Concluindo: como ninguém, entre os meus conhecidos, vai se animar a ir a um laboratório de destilação com o livro do Christophe Bataille em punho fazer experiências herbíferas, a pièce de résistance etílica da nossa festa será uma comportada e prática gelatina royal de morango e cachaça.