CÍNTIA

por Paulo Bullar

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Foi com trinta e cinco anos que eu larguei tudo e fui morar no interior da nação. O dinheiro que eu havia juntado em seis anos foi suficiente pra eu comprar uma pequena fazenda e uma vaca leiteira, a minha Cíntia. Na fazenda, eu plantava maconha, e era disso que vivia; era, portanto, agricultor, ou traficante, se preferir.

A fazenda:

Comecei plantando pouca erva, apenas uma horta, o suficiente pra eu não morrer de fome e ter o que fumar naquela imensidão modorrenta. Com o passar dos meses fui ampliando o espaço fértil, o que antes fora horta era agora plantação. Comprei toda a maquinaria necessária, é claro, transformando a plantação numa imensa indústria verde: canos de aço resplandecentes, ferro cromado, tubulações extremamente complexas, jatos de líquidos transparentes salpicando a folhagem hortálica, enfim. A colheita era sensacional. Comprei cágados e os espalhei por todo o espaço útil, enriquecendo assim o ambiente.

A vaca:

Cheguei na fazenda vizinha e disse: quero uma vaca. O dono da fazenda, Natanael, me levou ao curral e disse: escolha. Olhei pra esquerda e vi uma vaca marrom ruminando capim; seu nome é Sofia, disse Natanael. Olhei pra direita e vi uma vaca preta abanando o rabo; Angélica, falou Natanael. Olhei pra frente e vi uma vaca malhada, branca com manchas pretas; Bárbara, disse o dono. Olhei pra cima e vi uma vaca amarela; Cíntia.

Foi assim que começou meu idílio com Cíntia, minha vaca leiteira. De seu leite me alimentei, o leite da vaca amarela. Mas, pobre Cíntia, não durou muitas primaveras.

Larica:

Acordei e fui cuidar da plantação. Todos os dias eu percorria as dezenas de hectares que me pertenciam, de bicicleta, verificando as condições do solo e fazendo previsões com relação à temperatura, pressão atmosférica e umidade relativa do ar. Foi com espanto que, de súbito, para o meu horror, secamente, me bati com o defunto de Cíntia sobre o solo, o sol rasante penetrando sua carne inerte, as moscas sobrevoando seu corpo sujo de terra.

No dia fatídico, Cíntia acordou com fome e foi para o pasto. Comeu, comeu bastante, a vaca, até que cansou, cansou de comer capim, só capim. Andou, parou, deu um mugido e continuou andando, em direçào à plantação, ervas cheirosas a esperavam para uma incrível refeição, um verdadeiro banquete. Foi com enorme prazer que Cíntia sorveu, ou melhor, ruminou o primeiro quilo da erva. Uma sensação diferente invadiu seu monumental corpo amarelo, um prazer desconhecido, uma languidez a contaminou. Fosse apenas a languidez, tudo bem, Cíntia estaria viva, mas com a languidez veio a larica, a devastadora larica. Quanto mais ela comia, mais fome sentia, mais insaciável ficava. Foi, acredito, o primeiro mamífero a morrer de overdose de erva, e foi assim que eu, um rico agricultor, perdi minha plantação, e com ela minha fortuna, meus sonhos e meu amor, minha vaca.