O REPOUSO DE LILI

por Adriana Amaral

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Lili sentira a carne desfiando-se entre seus dentes. O gosto agridoce do sangue descera goela abaixo e espirrara no resto de seu corpo, marcando para sempre a blusa recém comprada. Entre peles e ossos já carcomidos pelo tempo, tentava não sentir pena nem amor. O ódio — em sua faceta mais violenta — já havia passado, tão rapidamente quanto as mordidas que desferira contra o velho de cabelos brancos e pele clara. Ele não lutara, encontrava-se imóvel, tão leve que o seu menor sopro o havia feito recuar contra a parede.

Com as presas ainda enterradas na jugular do ancião, contava gota a gota o tempo de vida que ainda restava a ele, como em uma espécie de ampulheta mórbida. Enquanto drenava as últimas energias daquele corpo anestesiado, atormentava-se com as lembranças do primeiro soco que tomara na vida. Via-se deitada no chão azul de uma enorme varanda, a boca sangrando aos borbotões. O emaranhado de cabelos longos cobrindo o nariz. Gritos histéricos de crianças perdiam-se no ar. A raiva acumulada naqueles olhos castanhos a fitavam com desdém.

"Vagabunda!" - repetia o homem com o dedo em riste.

Ainda podia sentir o ódio insuflando o peito, o coração doendo num descompasso quase murcho e, finalmente, transmutando-se e fluindo em forma de sangue para as veias, para o cérebro, para todos os órgãos. Sentindo-se viva somente ao lamber a primeira gota do líquido rubro, um pouco aguado, um pouco oleoso que sujava os dentes. Em meio a dor e a humilhação ele continuava lá, difícil de ser estancado, caindo em um fluxo contínuo sobre o piso. De um modo fisiológico, ele era uma companhia, a única que ousava permanecer com ela durante os 12 minutos anteriores ao seu desfalecimento.

Assim, descobrira que ódio e sangue completavam-se. E gostara, jurando vingança. O primeiro despertava a besta, rancorosamente escondida entre os óculos de fundo de garrafa, os cabelos penteados em longas tranças e o crucifixo de prata pendurado no pescoço. O segundo a alimentava, acalmando os instintos, estremecendo as pernas em um gozo zen. Ratos, gatos, pássaros, coelhos e finalmente pessoas, às quais provocava, a deleitavam em um prazer solitário, no qual ela bebia e brindava aos mortos. O mapa esverdeado das veias e artérias, agora estava delineado em sua pele, uma tatuagem que a classificava, exibindo a todos que tipo de pessoa era ela. Como a letra escarlate nas adúlteras ou um tartan de um clã escocês.

De volta à sala, porta-retratos mostravam rostos felizes e a tevê ligada transmitia mais um jogo de futebol. Encerrava-se a melhor parte da festa com os últimos fios de sangue escorregando pela roupa do velhote. Deleitava-se ao sentir que o sangue misturava-se a sua saliva e a língua batia como uma leve chicotada em cima da carne ferida.

Era o fim, agora só havia uma carcaça seca, consumida e sem um pingo de originalidade. Suas frases amargas já tinham liqüefeito, engolidas por ela há algumas horas. Ira e fome saciadas, podia voltar a dançar, a cantar. Onírica e quase infantil, iluminava-se abrindo as janelas do apartamento, deixando os primeiros raios de sol participarem de seu ritual privado. Nem tristeza, nem rancor, nem saudade, apenas a obrigação de ter-se despedido do pai por último e para sempre com um longo beijo.