Le dérier bonheur

Ariela Boaventura
 
 

A rota do ano-luz calculo dentro do passo
Minha dor é cicatriz, minha morte não me quis
(Mutantes, “2001”)
 
 

Era um homem alto de faces pálidas e encovadas; o cabelo oleoso caía pela testa e pelas orelhas em gomos, como sardinhas saindo de uma lata de azeite.  Vivia só e saía pouco de casa, um local grande, escuro, cheirando a bebê mijado. Deveria ter uns 30 anos, e segundo o médico não passaria disso.

Era um homem doente, como todos o conheciam no prédio. O médico disse que o câncer já havia tomado-lhe os pulmões e certa parte da medula óssea, um caso perdido e que em questão de menos de mês a doença teria dado cabo de sua vida.

Agradecia a Deus a cada dia que conseguia viver a mais, e considerava um desperdício ter de dormir para repousar o corpo, só o fazia porque paradoxalmente isso ajudaria a mantê-lo vivo por mais tempo. Dormia em média umas cinco horas, indo deitar-se cedo da noite e acordando na alvorada. De manhãzinha, tomava seu longo chimarrão e fumava o único cigarro do dia, suas únicas felicidades. Um pijama encardido era a roupa de sempre, as pantufas agasalhavam os pés; tomava poucos banhos, comia só o essencial para matar a fome, o que dava-lhe essa aparência oleosa e raquítica. Embora o médico tenha falado em pouco tempo de vida, “menos de mês”, ele já havia ultrapassado a marca e entrava no segundo mês sem apresentar pioras.  Resolveu não ir mais ao médico, aquele agourento.

A coisa aconteceu assim, sem explicações. Há coisas que são assim mesmo, sem razão de ser.

Emanuel, o doente, deitou-se. Não ligou a tevê e esqueceu de engolir o chá com o remédio para dormir. Estava naquele estado entre acordado e dormindo, quando as idéias absurdas passam pela cabeça. O livro que estava lendo ainda estava aberto sobre o sofá e não há como saber como Emanuel foi parar na cama, talvez tenha ido ao banheiro e refletido sobre o cansaço, mas não há certeza sobre isso. Está ali sobre a cama, de pijamas e sem cobertor, um pouco encolhido e deitado de lado.

No apartamento de cima, o casal realiza sua guerra noturna; ela a cacarejar o quanto ele é cretino, imbecil e safado; ele a refutar em tom baixo cada acusação e jurando fazê-la se arrepender disso. A briga esquenta, ouve-se esbarrões em móveis e a voz do homem mais forte, mandando a mulher calar a boca. O cacarejo fica mais agudo, ela choraminga enquanto fala, um corpo esbarra em algo, quem sabe uma cadeira, e cai no chão. Emanuel desperta completamente com o barulho. Suspira. Pensa no tempo.

No tempo que essas pessoas estão a desperdiçar. Na saúde dessas pessoas, nos seus corpos cheios de vigor. Nos peitos da mulher, rijos, balançando enquanto briga. Emanuel pensa no seu tempo roubado da morte, uma briga vencida a cada minuto. No seu corpo oleoso e frágil; no tempo que faz que não vê seu corpo, no medo que tem de ver seu corpo. No tempo em que ele não vê o corpo de uma mulher. Pensa nos seus tumores, pensa naquele tumor que já aparece sob a pele das costas e no quanto incomoda, obrigando-o a deitar-se de lado. Pensa nos seus remédios para dormir. Mais um corpo tomba, outro joga-se sobre a parede. Suspira de novo, o Emanuel. É um homem doente, os vizinhos todos sabem, isso é uma falta de respeito, é quase meia-noite, ele está com sono.

Agora a mulher grita para que o marido a mate se for bem homem, a voz está tão aflita e ensandecida que nem humana parece. Emanuel ouve uma bofetada e um silêncio, depois o que parece uns pulos e depois outro barulho de corpo caído.

Escuta, ainda, o Emanuel, um homem doente e com tempo de vida contado, um grito abafado e algo que poderia muito bem ser um pedido de socorro, mas agora ele está muito ocupado. Agora Emanuel levantou-se, pôs as pantufas e está completamente desperto, abrindo uma gaveta. E agora, quando a mulher diz seu filho duma puta, ganindo e chorando, Emanuel já está subindo as escadas que dão para o andar de cima, está se dirigindo à porta do apartamento 601, bem acima do seu, e está com os nós dos dedos batendo na madeira da porta. Emanuel está calmo, inexorável como o tempo, e suas batidas toc toc, toc toc acompanham seu estado de espírito.

No 601, tudo silencia.

O homem vem abrir, pergunta antes quem é, é o vizinho debaixo, Emanuel responde, olhando bem defronte ao olho-mágico. O homem abre a porta, solta a correntinha, tudo bem seu Emanuel?

Tudo bem.

Ambos se olham por pouco mais de um tempinho, depois se ouviu um pam surdo, como o de uma rolha de champanha, e depois o corpo do homem caiu junto à porta de seu apartamento, um tiro silencioso quase à queima-roupa fazendo seu coração apaixonado sangrar. A mulher, ainda meio histérica e com a cara vermelha do choro, veio ver o que foi e viu o corpo do seu homem no chão.  Com o rímel escorrendo numa lágrima preta de um dos olhos, olhou indagante para o vizinho, ele era um homem doente, nunca poderia fazer aquilo, e ela então ouviu mais dois pam pam surdos, que fizeram-lhe uma mancha vermelha em cada seio, caiu para trás, contrariando a posição do marido, que havia caído de frente; sua calcinha preta ficou aparecendo.

Emanuel ainda ficou ali parado alguns minutos, não para contemplar o que havia feito, mas para escutar se algum vizinho dava sinal de vida. O edifício estava em paz. Então, com as silenciosas pantufas Emanuel desceu as escadas, entrou pela porta aberta de sua casa, guardou o revólver na gaveta, deitou-se e dormiu o sono que nenhum inocente pode imaginar.