Debaixo do salto alto dos 22 anos
 

Cristiele Ribeiro
 
 

Agora, somente agora, Björk está me fazendo falta.  Peguei Joni Mitchell escondida entre os cds na estante preta e nem mesmo ela pode me ajudar a acalmar essa melancolia de uma (de novo) sexta-feira à noite. Por que todas as sextas-feiras nos preparam as melhores e piores notícias? Tudo é acumulado nesse dia, resultados, chamadas, demissões, feriados, pagamentos, visitas...  Tudo. Ninguém quer nada na segunda-feira, nem na terça... Achei Portishead, ainda há alguma coisa para se escutar quando não se quer escutar nada que te faça ficar alegre, com sorrisinho amarelo e cara de paisagem.  Quero a dor, lenta, silenciosa, a instrospecção nessa noite quente, o contrário de todos os boêmios que estão se emborrachando em bares que estão reabrindo, fechando, reformando. Eu nem queria mais que você viesse, eu já estava aprendendo a ser sozinha novamente. E não é tão ruim pelo simples fato de que você não precisa se preocupar se é amada ou não, apenas ignora a si mesma e segue os dias como se segue uma estrada de chão rumo ao interior do interior do interior de uma cidade recém-emancipada.
Eu não queria ter te ligado, te ouvido, ter percebido que você estava feliz e que poderíamos perfeitamente vivermos longe um do outro. Uma ilha. Quem foi que teve essa idéia idiota de que as pessoas nascem e morrem sozinhas? A gente nasce por alguém, a gente vive por muitos alguéns, a gente morre por alguém. A gente vive em função de alguém. E mesmo estando viva e conhecendo tantas pessoas, sinto falta de não ter conhecido algumas que já foram para outra vida ou lugar e de não ter tido tempo para dar mais atenção àqueles que também não voltam mais.

A distância, querido, ela separa, sim. Ela separa corpos e também corações. Poucas paixões resistiram à distância, assim como poucas paixões resistiram à tentativa de posse.
Eu disse que estava sem tempo de escrever. Menti. Eu estava com muito tempo. E isso é um problema. É necessário não se ter tempo para nada, se estressar com tudo e querer sumir para finalmente conseguir escrever.  E eu escrevo para ti, mais uma vez. Não é uma carta doce, apaixonada, como eu nunca soube escrever. Sempre soube escrever o que eu sou, e não o que você ou eu gostaria de ser.
E eu não sou aquela que mamãe pediu para nascer, nem aquela que papai pediu para conhecer, nem aquela que os irmãozinhos chamaram de “maninha”, nem aquela que recebe ligações de amigos convidando para passear e para repartir segredos durante todo o dia, toda a hora, de minuto em minuto, trim-trim-trim.
Eu continuo com medo, cada vez com mais medo. Começo a perceber que nada sei sobre mim e sobre as pessoas que vivem por perto e me surpreendo toda a vez que alguém recusa um sorriso, um simples oi, um obrigada ou um desculpa.

A voz de Nina Simone diz que ela viveu “My baby just cares for me”, quantos gostariam de ter ouvido essa música cantada pelos seus.

Acho que começa a chover e a casa toda está aberta. Vou deixar que a água gelada entre e molhe o tabuão caro que compraram para decorar esse duplex que nem de longe é meu, por mais que tenham dito isso um dia. Estou aqui temporariamente e minto quando digo que não quero posses. Tenho medo de sair daqui e ter que procurar um canto só para mim. Tenho medo de não achar, de não conseguir pagar, de perder o emprego, de pensar que eu não consegui fazer com que aprovassem o meu tão estudado projeto. Tenho medo de me perder e de esquecer tudo o que eu quis para mim.

De tanto errar, muitas coisas mudaram, e muitos até se iludiram quanto a pessoa que eu representava ser. Se eu pudesse recomeçar de novo, se eu tivesse essa chance, eu entrava pela porta pintada com bolinhas azuis e não pela porta de golfinhos cor-de-rosa.

Não sei procurar textos bonitos para serem expostos e distribuídos no dia da mulher, do índio ou do médico.  Tenho apenas poemas e poetas que sofreram, tenho apenas Hilda Hilst cuidando de seus inúmeros cachorros, Caio Fernando Abreu cuidando de seu jardim, Lya Luft falando sobre o sentir raiva de si e dos outros.
E eu não fui no Fórum, eu não vi o Buena Vista Social Club, eu não assisti ao show do Zeca Baleiro, nem o vi tocando num pequeno bar da cidade, nem consegui fazer com que o meu beta sobrevivesse e a minha violeta ainda teima em morrer mole e acinzentada, sem flores e sem cheiro.

Mas eu comprei mel na feira hoje. E foi tão bom sair do trabalho depois de 10 horas de correria e ver aquela feira de pequenos agricultores no meio da praça central.  E foi tão bom saber que mesmo que você esqueça das coisas que eu gosto, eu tenho tempo e oportunidade de comprá-las para mim. E ainda posso escolher. Claro, estou falando das cucas italianas.

Pensei em te dar tantos presentes, mas esqueci que primeiro devo pensar em mim e que agora eu preciso procurar um lar. Um canto em que eu possa colocar o meu colchão, algumas peças de roupa, meus livros e cds, o meu globo e o meu abajur. Ainda tenho que comprar um som e uma geladeira, mas primeiro tenho que procurar umas meias porque o inverno já está chegando e dizem que esse vai ser o pior dos últimos 22 anos.