A ILHA INTERIOR

J. Olímpio

 

Desde que Onofre largara o trabalho, aqueles sonhos tinham começado a aterrorizá-lo.

Ser rádio-telegrafista da marinha mercante. Esse sempre fora o ideal de Onofre Cerqueira Grunewald Bastos, desde seus 12 anos de idade. Depois de duas décadas e meia “embarcado”, como se diz no jargão dos marujos, Onofre já não tinha com que se iludir ou até mesmo o quê esperar daquela vida de nômade entre as ondas, boa parte do dia trancado na sala de rádio de navios. O resto do tempo era esbanjado entre a cabine e o convés, ou dormindo ou, ainda, olhando o relevo mutante do mar.  Nem mesmo a decantada vida aventureira, com mulheres disponíveis em cada porto, lhe parecia mais atraente. Afinal, nunca exagerou nas doses de sexo; só uns poucos desafogos hormonais.  Estava com 53 anos, já era avô. A esposa, Jurema, parecia nem querer saber se ele lhe fora fiel. Nem Onofre queria suspeitar da fidelidade dela, como se um justificasse as supostas escapadas do outro.

Mas, voltando aos sonhos... Surgiam ruidosos e repentinos – sim, quase ensurdecedores! – no meio das mais tranqüilas noites de sua recente aposentadoria. Tinham jeito de premonitórios mas, incoerentes, davam a entender que ressurgiam do passado.

A seqüência era sempre a mesma.

Começava com aquela golfada de água salgada acertando-lhe o lado esquerdo do rosto e o riso debochado dos quatro nativos que o cercavam.  Enquanto Onofre “despertava” naquela praia de ilha, os ouvidos inundados de mar e os olhos ardendo. Nu como seus acompanhantes negros, ele olha em volta, desorientado. Os quatro desconhecidos gargalham da sua cara interrogativa. O som das ondas é terrível...

Eles o erguem e conduzem para dentro da mata que margeia a praia. Já não riem mais.

Parecem caminhar horas (sonho é só doidice!) e chegam a uma grande maloca de palha seca. Nenhuma pessoa em torno, mas o mar ronca em suas orelhas, ainda.

Arrastam-no para dentro, pois ele reluta em entrar. Ninguém à vista, depois que os olhos se acostumam à penumbra abafada.  Um dos homens lhe aponta uma esteira meio podre, no meio da maloca. Não oferece, ordena. Onofre obedece e senta desajeitado. Os nativos sufocam risadinhas e saem. O mar segue roncando...

Quando as vozes e o ruído de passadas invade o ambiente, Onofre já está quase vencido pelo “sono dentro do sonho”. Uns setenta homens, mulheres e crianças – todos despidos e suarentos - invadem o espaço, gesticulando e tagarelando. Ao vê-lo, não contém a curiosidade. Cercam-no, olham, apalpam, empurram e examinam seu corpo descoberto. Não existe nada de libidinoso na atitude daquele povo bárbaro, só algo como uma curiosidade étnica. Riem alto e parecem combinar algo entre eles.  Onofre teme ter sido pego por canibais e começa a suar frio. A balbúrdia segue mais um tempo (indefinido), até que um grito de homem silencia aquele bando assanhado. Um corredor humano se abre entre a fenda-porta na parede oposta e Onofre.

Contra-luz, ele adivinha dois vultos: o do homem que o mandara ficar ali e o de uma mulher branca.

Ela é a única pessoa presente que tem o corpo coberto por roupas. E, apesar de esfarrapadas e sujas, são civilizadas: uma saia de brim cáqui até a altura dos joelhos e uma blusa que, um dia, tinha sido branca.  A moça deve ter uns vinte cinco anos, loura de olhos verdes e bem proporcionada. Dá a impressão de estar sonolenta, cambaleante.  O homem do grito começa a andar na direção de Onofre, puxando a moça pelo pulso esquerdo. A tribo rumina um princípio de murmúrio. O olhar enérgico do suposto líder congela a língua de todos.  Param a dois metros da esteira onde Onofre ainda tenta entender a situação. O suposto líder se posta meio passo atrás da moça e, mostrando-a para o branco aparvalhado, começa um discurso ininteligível.

Quase dois minutos depois (êta, sonho cronometrado...!), o negro cala e espera a resposta de Onofre. A branca parece um zumbi, nem pisca. Só aderna para um lado, recupera o prumo e inclina-se para o lado oposto...

Sem atinar para o que o tal morubixaba quer dele, Onofre levanta-se e ensaia uma articulação verbal qualquer. Três ou quatro palavras, uns gestos interrogativos e a cara do manda-chuva fica mais fechada. Retoma o discurso, agora num tom mais irritado. Aponta e sacode a loira tonta, apalpa os seios dela e, na ânsia por se fazer entendido, arranca a blusa ex-branca e arria a saia da pobre, em dois puxões. Ela nem sente.  Onofre, que cada vez entende menos o que se passa, deixa o olhar percorrer todo o corpo da loira, que já não tem nada sobre a pele.  Inexplicavelmente para o contexto da situação, o efeito da visão da moça despida lhe ocasiona um desejo súbito, bem representado por uma constrangedora ereção.

A tribo ovaciona aquele priapismo repentino e todos iniciam uma espécie de canto gutural, minimalista e progressivamente mais intenso.  A moça branca é literalmente empurrada para cima de Onofre, que se desequilibra e embola com ela na rede. Começa a beijá-lo como que instigada pelo canto dos nativos. Ensaia uns gemidos, que precipitam a vontade de Onofre.

Temendo pelo fiasco ejaculatório que já se anuncia, o náufrago de si mesmo procura, desesperado, a fenda entre as pernas da loira cada vez mais excitada. Sente a penetração fácil e inicia os arrancos do coito.  Exultante, a taba está em polvorosa, uma poeira fina em suspensão e o sol vazando as palhas da cobertura.

Pronto para o final, Onofre estufa o peito e olha direto para sua parceira improvisada, que resfolega e se contorce gemendo. Prepara o tranco final e o grito do vencedor e aí, ...

..Acorda invariavelmente suado, o pijama sendo empapado pelo gozo frustrado que o resgata do que jamais viveria.