Almoço de domingo

Luis Augusto Popucchi


 


Espanquei minha sogra neste fim de semana.
Nunca faça isso, ainda mais se ela possui uma voz estridente como uma furadeira em ação sobre uma peça de metal. Uma voz de te furar o tímpano e provocar o inconcebível, excitar teu ímpeto e ativar descontroladamente o teu nervo do braço.

Na verdade, tudo aconteceu na hora do almoço, por ocasião do mastigar coletivo. Esse momento é especial, todo mundo sabe: as pessoas estão com fome, conversam só para passar o tempo enquanto a comida não chega. Então, os víveres tratados, bezuntados, regados, cozidos, assados e temperados são trazidos, e a atenção fica totalmente voltada para os pratos, o naco mais colorido e suculento, aquela parte pervertida do bicho que só você gosta, enfim. Mas a gente disfarça com conversas sobre futebol, por exemplo, para não parecer falta de ducação ou, em casos extremos, selvageria. Mas é um momento animal. Somos animalescos ao servirmos um bovino, largá-lo sangrando dentro do prato, o molho vermelho escorrendo sobre a louça branca.
Enfim, à sogra.

Era mulher robusta, tipo as hildes norueguesas, porém velha e mais gorducha. Possuía as faces rubras e uns coxões semelhantes a um pernil de avestruz. Nos dávamos relativamente bem, dentro do que é possível se dar bem com uma sogra, até o mês passado.

Ela sempre foi gulosa e afeita a almoços extensos, que entravam a tarde toda. No primeiro mês de casamento, tudo bem. Tratei mal meu estômago quando solteiro, e, depois de casado, a coisa não mudou muito, pois minha mulher não é lá estas coisas na mesa. Ao ver aquele mundo de comida nos fins de semana e dia santo e data de comemoração geral e de aniversário, quase gozei. Era um troço que não acabava mais, umas vinte saladas, trocentos pratos quentes e mais trocentos frios, bifinho disso, escalopezinho daquilo. E havia ainda as entradas, bem-temperadas, que isso se pode dizer da minha sogra, um asno bucéfalo: de comida ela entende. E aquelas entradas eram de um tempero que vou te dizer, lembra algo como uma mistura entre a culinária da Floresta Negra e a lisboeta, umas carnes embutidas que ela mesma fazia, berinjela com pimenta, ahn, e queijos e azeitonas e cogumelo disso e cogumelo recheado e uma infinidade de criatividade para cozinhar e cozer pratos que benzadeus!

Ah, sim, o nome da minha sogra: Odete. Maria Odete. Horrível, reconheço, mas não fui eu quem escolhi. Bom, a Dona Odete, uma senhora de 64 anos, viúva, fez um suíno assado para o domingo de Dia das Mães.
Foi uma cena. Pedi que ela me passasse o porco, um rico lombo assado, bem molhadinho, temperado com vinho branco, pouca pimenta e discreto alecrim. Ela passou o porco, depois serviu o vinho. As pessoas estavam concentradas nos pratos, sorriam. Quando a garrafa de vinho chegou até onde eu estava, minha cunhada me entregou o duralex com o pedaço de animal morto, devagar, pois estava pesado.

Não sei, algo se acendeu ou quebrou dentro de mim, perdi a concentração, o apetite, a noção de tempo e lugar. Não desmaiei, mas fiquei ali, não sei quanto tempo, feito múmia, o prato com o suíno numa mão, a outra caída junto ao corpo, a boca entreaberta (as pessoas me relataram meu estado), olhos parados num ponto indefinido. Segundo testemunhas, Dona Odete teve ganas de matar-me, com o olhar.

– O porco tá esfriando! O que deu nesse homem! Virou pedra? Tá me gozando, é? Não tem vergonha, as pessoas todas esperando o porco, que tá esfriando na tua mão, seu retardado, e tu aí, há horas com esse prato na mão! Olha, eu tô por aqui contigo!, vomitava a dona Odete, colocando o dedo médio na garganta, aludindo uma quantidade invisível que se multiplicava dentro dela como bactérias de um iogurte. Sabe-se lá por que estava por ali comigo.

Mas eu não escutava nada.
Até que numa piscada acordei do transe, porque aquilo foi um transe, epilético ou hipnótico. A mesa toda olhava pra mim, o pessoal com jeito de magoado, quiçá por eu ter atrapalhado os primeiros bocados. Então, Dona Odete largou uma caçarola de salada de endívias, a boca contorcida num esgar de desgosto, e tac tac tac com os tamancos em redor da mesa, chegou-se ao meu lado.
Eu ainda estava imóvel, não conseguia me mexer apesar de estar consciente. Minhas orelhas estavam quentíssimas, o suor escorria pelas mãos, sentia frio, queria sumir dali, nunca mais ver aquela gente, nem mesmo minha mulher.

Dona Odete chegou sua boca quebrada em vincos pelo tempo junto ao meu ouvido esquerdo, puxou seu melhor agudo e cuspiu:

– Então o retardado não escutou o que eu disse?

Quase me ensurdeceu.
Senti um choque nos nervos do braço, que segurava ainda o prato de suíno. Num movimento automático, o membro obedeceu ao instinto, num repuxo forte. Primeiro foi o porco, que voou sobre o rosto de Dona Odete, plaft! Depois, o lombo espatifou-se no chão de parquet encerado, que formou, a exemplo de uma ilha, uma roda de molho suculento em volta de si. Molho também escorria pelos cílios da velha e boa parte dos seus cabelos. Um deperdício. Ela, porém, não mexia um nervo, como se, caso se movimentasse, a situação piorasse ou o porco lhe mordesse. Então, o pior: o prato seguiu o porco ligeiramente atrás, o prato que ainda abrigava um resto de molho e toda a iguaria que servia de adorno ao assado, atingiu a quina da cabeça da dona Odete em cheio. Ela demaiou, por sorte.

Isso tudo deve ter durado um segundo. A sorte se estendeu por mais um tempinho, com as pessoas se ocupando do bem-estar da parente, vendo o quanto estava machucada, era preciso removê-la dali e colocar-lhe gelo à testa, batatas em rodelas, pepinos, um banquete quem sabe. Aproveitei e sumi.
Só vi minha mulher à noite. Veio com história, evidente, elas adoram uma cena, uma briguinha, uma encheçãozinha de domingo, especialmente na hora do Fantástico ou do jogo. Antes que ela terminasse a primeira frase, fui enfático como um general:

- Só vim dizer adeus.

Com isso, ganhei a rua. E minha liberdade de volta. Mas durou pouco, só a até a meia-noite, pois a covardia diante de uma possível volta à vida árida de solteiro foi maior que o medo da mulher.
Bom, tenho de ir ver minha sogra, agora, com licença. Diz que ela está com um ovo verde do lado da testa.
 


Só a antropofagia nos une.
 

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