OS ESTADOS UNIDOS DA AMNÉSIA
por Carlos Fuentes
 

Sem a França, os Estados Unidos não existiriam. A sábia firmeza da França pode abrir a perspectiva de uma ordem mundial fundamentada no direito. Os Estados Unidos parecem querer ignorar esta possibilidade.

A ridícula francofobia que vem sendo desenvolvida pelos "patrioteiros" norte-americanos mais ensandecidos prova sobretudo que a superpotência mereceria às vezes ser chamada de "os Estados Unidos da Amnésia".

Pois é possível afirmar sem hesitação que, sem a França, os Estados Unidos não existiriam. Sem o apoio da monarquia francesa, é provável que George Washington (1732-1799) e seus homens não teriam vencido a guerra da Independência. É certo, em todo caso, que eles a ganharam graças ao poderoso apoio que receberam então da França. Em 1776, Benjamin Franklin (1706-1790) apresentou-se em Paris na qualidade de embaixador da revolução, na corte do rei da França (onde ele chamou a atenção pela simplicidade republicana de seu estilo de ser, e pela rapidez e o brio de sua inteligência). Naquele mesmo ano, o rei Luís 16 autorizou a entrega gratuita de munições por um montante de 1 milhão de livras para os exércitos de George Washington.

A ajuda francesa salvou George Washington durante o cruel inverno de 1777: as forças revolucionárias, então sitiadas dentro da cidade de Morristown e enfraquecidas pelas deserções, foram salvas pela ajuda da França.

Em 1778, foi assinado o tratado de amizade e de comércio entre a França e a colônia rebelde da América do Norte. Este tratado incluía uma cláusula da nação mais favorecida e obrigava a França a garantir a independência dos Estados Unidos da América. Numa conseqüência lógica deste tratado que foi ratificado em fevereiro, a guerra entre a Inglaterra e a França foi declarada em junho.

Um grande número de oficiais franceses de alta patente interveio diretamente para apoiar George Washington e seus rebeldes.

Uma primeira frota francesa, liderada por Charles Hector d'Estaing (1729-1794 - um sobrenome que seria ilustrado mais tarde pelo presidente Valéry Giscard d'Estaing), foi enviada para bloquear os ingleses dentro do porto de Nova York em 1778.

O marquês de La Fayette (1757-1834), que resolvera financiar a sua empreitada literalmente "por meio de seus ganhos pessoais", juntou-se às forças revolucionárias e foi nomeado em 1777 (da mesma maneira que ocorreria cerca de dois séculos mais tarde, em Cuba, com o argentino Ernesto "Che" Guevara) para o comando da revolução. Desde 1776, ele havia convencido o rei Luís 16 a enviar um corpo expedicionário de 6 mil homens para combater ao lado de George Washington.

O fim da guerra da Independência dos Estados-Unidos não teria sido sequer concebível sem a intervenção decisiva das forças armadas francesas. Em 1780, a frota francesa do almirante de Grasse (1722-1788) bloqueou o exército inglês na Virgínia, retirando-lhe toda possibilidade de fuga pelo mar. No mesmo momento, sempre na Virgínia, o conde de Rochambeau (1725-1807) e suas forças faziam frente às tropas do general inglês Charles Manne Cornwallis (1738-1805). O sítio conduzido pela frota francesa e o apoio militar proporcionado ao exército revolucionário de George Washington selaram o destino da Inglaterra nas suas treze colônias. Cornwallis foi forçado a capitular em outubro de 1780 e, com isso, a independência dos Estados Unidos estava definitivamente adquirida.

Quando ele chegou à França, um dos primeiros atos do general John Pershing (1860-1948), comandante-chefe do corpo expedicionário americano durante a primeira Guerra mundial, foi prestar uma homenagem solene diante do túmulo do herói francês da revolução americana, pronunciando a frase histórica: "La Fayette, nous voilà!" ("La Fayette, aqui estamos!").

Mas o general Pershing tinha um senso da honra militar e do reconhecimento nacional do qual carece totalmente o colérico e sanguinário secretário da Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld. O fato de que Rumsfeld tenha sido o primeiro a celebrar a aliança dos Estados Unidos com Saddam Hussein em 1983, fornecendo-lhe as armas de destruição maciça que hoje alimentam os pesadelos do Drácula do Pentágono, é uma prova entre outras da existência de uma dupla verdade. Os Estados Unidos são o Dr Frankenstein do mundo moderno, especialistas em criar os seus próprios monstros que, mais tarde, se voltam contra os seus criadores.

Saddam Hussein no Iraque e Bin Laden no Afeganistão são crias da política externa obtusa, mercenária e contraditória de uma nação que, contudo, sabe ser, quando ela quer, ao mesmo tempo clarividente e pragmática. Que tal tentarmos imaginar o que seria o mundo hoje se Bill Clinton ainda estivesse na Casa Branca ou se Al Gore tivesse vencido as últimas eleições presidenciais (as quais, na realidade, ele venceu, pelo voto popular, mas acabou não levando)?

Bill Clinton cumpriu as suas inevitáveis obrigações de chefe da superpotência com uma discrição, uma capacidade de negociação e de incentivo de alianças que permaneceram completamente alheias às barulhentas manifestações de maniqueísmo ("Quem não está conosco está contra nós", "o eixo do Mal") do evangelista coberto de pistolas que lhe sucedeu na Casa Branca. Clinton ou Gore, estou convencido disso, teriam concentrado os esforços de sua nação, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, no combate contra o terrorismo, um inimigo que não é convencional e, portanto, não pode ser combatido por meios convencionais, em vez de desviar as suas forças para travar a guerra contra o Iraque, sacrificando com isso a solidariedade mundial.

Bush e Cia, por meio de suas ações temperamentais e destruidoras da ordem internacional, vão transformar o mundo num próspero criadouro de terroristas. Bin Laden dispõe hoje, graças à cegueira do atual governo dos Estados Unidos, um exército de terroristas potenciais que - ô ironia! - não mais precisarão preocupar-se com a repressão antifundamentalista de Saddam Hussein que os ameaçava.

Mais, ao que tudo indica, estamos diante de algo ainda mais grave: é a consagração pela Casa Branca do princípio da guerra preventiva. Se a guerra fria acabou não ficando quente, foi porque prevaleceram a dissuasão e a contenção. Estes princípios tendo sido substituídos pelo uso discricionário da força, toda nação que se opõe a uma outra pode, daqui para frente, considerar-se autorizada a desfechar o primeiro golpe. O exemplo mais contundente desta doutrina, no passado, é o ataque de Pearl Harbor pelo Japão, em 7 de dezembro de 1941. "Um dia que permanecerá nos anais da infâmia", declarou então o maior presidente americano do século 20, Franklin D. Roosevelt (1882-1945).

Será que o ataque contra o Iraque ficará na história como sendo um outro "dia infame"? Não sei dizer. Mas, sendo ou não infame, ele é, e permanecerá, um dia perigoso. Se a comunidade internacional não conjugar os seus esforços para criar uma ordem jurídica e política vigorosa para o século 21, caminharemos aos trancos e barrancos, de crise em crise, para um abismo, o qual, por sua vez, tem um nome: o apocalipse nuclear.

É por estas razões que a sábia firmeza da França, de seu presidente Jacques Chirac e de seu ministro das Relações Exteriores, Dominique de Villepin, não constitui apenas uma chance para o mundo, mas também para os próprios Estados Unidos da América, pelo fato de abrir a perspectiva de uma ordem mundial fundamentada no direito.

Sem memória e sem miolos, ignorante, o atual governo americano não entende estas razões. Os ultras do Norte acreditam estar ofendendo a França - ridiculamente -, mudando o nome das batatas "fritas" - "french fries" - para batatas "livres" - "freedom fries". Eles vão provavelmente parar de beber água mineral de Evian durante um certo tempo e champanhe por um tempo não tão longo.

Mas, na entrada da baía de Nova York onde ela se ergue, a estátua da Liberdade - uma doação da França aos Estados Unidos - está aí para lembrar aos americanos que, se eles acreditam ter salvado a França por ocasião de duas guerras mundiais, a França, por sua vez, não só salvou, como também ajudou de maneira decisiva a criar os Estados Unidos da América.
 


Carlos Fuentes é escritor mexicano. Publicado originalmente em La Nación, Buenos Aires, 15/03/2003, em http://www.lanacion.com.ar/suples/enfoques/0315/sz_486432.asp