GUERRA ANUNCIADA:
CONTROLE SOBRE A ONU É APENAS UMA DAS FACETAS DO PODER DE WASHINGTON
Entrevista de Noam Chomsky a Renato Galeno
publicada em O Globo 19/03/2003
 

Escritor e diretor do departamento de lingüística e filosofia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Noam Chomsky é uma exceção em seu país. Fora do eixo intelectual Democrata-Republicano, ele encontrou um espaço próprio e hoje é o crítico mais contundente do sistema político dos EUA. Defendendo há anos que o discurso de liberdade de Washington não passa de uma maquiagem para esconder o apoio à grande parte do regimes tirânicos do mundo, ele afirmou, em entrevista concedida ao GLOBO, por telefone, horas depois do ultimato de George W. Bush a Saddam Hussein, que a banalização do uso da força pelos EUA nada mais é do que a continuação de governos da década de 80.

O presidente George W. Bush declarou guerra ao Iraque. Os EUA entrarão em guerra com um país que não atacou vizinhos nos últimos 12 anos, não persegue curdos desde a metade dos anos 90 e não tem ligações comprovadas com o terror. Ao mesmo tempo, os EUA são aliados de países que fizeram coisas assim recentemente, como Turquia, Paquistão e Arábia Saudita. Há alguma razão para a guerra?

NOAM CHOMSKY: Há várias. Uma é que, ao contrário dos outros países mencionados, o Iraque não é subordinado ao poder dos EUA. Portanto, é um possível alvo. Também é um país indefeso. A Coréia do Norte é uma ameaça muito maior, mas pode se defender. Não é realmente uma guerra, se se olhar para a distribuição de forças. Outra razão é que o Iraque tem a segunda maior reserva de petróleo do mundo. E os EUA querem o controle dela. Há também a questão crucial do momento político interno. Não há forma de o atual governo ganhar as eleições se a população estiver atenta a questões como economia, atendimento médico, qualquer coisa na arena socioeconômica. É necessário minimizar estas preocupações em favor da segurança. A histeria sobre como o Iraque é um perigo iminente para os EUA e como Saddam está ligado ao 11 de Setembro começou em setembro passado, bem em tempo para a campanha eleitoral para o Congresso. E funcionou: os republicanos tiveram pouco mais de 50% dos votos. E algo similar será necessário para as eleições presidenciais.

George Bush, pai do atual presidente, afirmou que vivemos numa nova ordem mundial após o fim da Guerra Fria. Desde então, os EUA decretaram guerras contra as drogas e contra o terror, e usaram estes motivos para atacar outros países. Há alguma diferença na ordem mundial?

CHOMSKY: Sim, há. Quero dizer, temos que nos lembrar como George Bush pai definiu a nova ordem mundial: "O que dizemos é o que vale". As pessoas que estão agora nos escritórios de Washington foram, quase todas, dos governos Reagan e do primeiro Bush. E seguem as mesmas políticas. Com a exceção de que, naqueles anos, havia limites porque havia um dissuasor (a URSS). Ela desapareceu. E, mais ainda, graças aos anos de Clinton há outros mecanismos para controlar as pessoas que não existiam 20 anos atrás. Então é horrível, mas faz sentido acreditar que "o que dizemos é o que vale" é de fato a nova ordem mundial. Ela foi apenas estendida na estratégia nacional relatada pelo segundo Bush setembro passado, que diz que nós iremos dominar o mundo através da força e vamos assegurar que nunca haverá qualquer desafio ao poder dos EUA, porque temos um poder militar devastador, e vamos usá-lo em guerras preventivas para ter certeza de que desafio algum irá surgir.

Haveria outra forma de controle sem o uso da força?

CHOMSKY: Posso dar como exemplo o Brasil. O país tem um presidente impressionantemente popular, com muito apoio político. Há 40 anos o Brasil também teve um presidente popular, não no nível de Lula, mas um tipo austero: João Goulart. Ele foi derrubado por um golpe militar. No caso de Lula, não há rumores sobre um golpe. Por duas razões. Primeiramente, a população não toleraria isso. Mas também por outra razão: não é tão necessário. Lula pode ser controlado por mercados financeiros internacionais. Houve o processo de liberalização financeira e privatização que foi imposto por programas neoliberais nos últimos 20 anos. Isso fez com que seja extremamente difícil fazer qualquer tipo de programa de reformas. É por isto que Lula foi aclamado por financistas no Fórum Econômico Mundial. Porque eles sabem, ou pensam, que podem impedi-lo de fazer as reformas.

Estamos vendo o fim da ONU e de organizações como a União Européia e a Otan?

CHOMSKY: Não creio que seja o fim. Os EUA irão continuar a usar a ONU quando precisarem. Nos últimos anos, a ONU foi capaz de agir somente quando as grandes potências permitiram. Fala-se muito agora do veto francês. Mas é só olhar para os vetos desde os anos 60. Até os anos 60, os EUA não vetaram qualquer proposta porque a ONU estava totalmente sob controle. Se se olhar para a situação do mundo do pós-guerra, os EUA eram tão poderosos que ninguém usaria o direito de veto e a ONU era apenas um instrumento para o poder americano. Na metade dos anos 60, o mundo mudou. O processo de descolonização acontecia, as outras potências industriais já haviam se recuperado e os EUA não tinham mais o domínio completo sobre a ONU. E desde 1965 os EUA estão bem à frente dos demais em vetos no Conselho de Segurança. Os vetos americanos se espalharam por uma grande gama de assuntos. Só para pegar um, muito relevante hoje: o atual governo, que estava no poder nos anos 80, foi condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça, em 1986, por terrorismo na sua guerra contra a Nicarágua, que pediu uma decisão do Conselho. Os EUA vetaram.

Houve alguma surpresa no discurso de ontem (segunda-feira, 18/3) de Bush?

CHOMSKY: Foi o esperado. O mais interessante foi o anúncio feito no dia anterior pelos três líderes, Bush, Aznar (Espanha) e Blair (Grã-Bretanha), onde demonstraram seu completo desprezo pela democracia. A democracia é um crime que precisa ser esmagado. Líderes são bons se obedecerem às ordens de Washington, são ruins se tomarem a posição da imensa maioria de suas populações. O que deram no domingo não foi um ultimato a Saddam, mas à ONU.

Praticamente todos os países do mundo são contra esta guerra. Por que os americanos, em sua maioria, apóiam a guerra?

CHOMSKY: Se se olhar para as pesquisas, pode-se encontrar as razões. Se se olhar para a parte da população que está a favor da guerra, ela é diferente do resto do mundo em pontos fundamentais. Em perguntas como "Saddam é uma ameaça iminente para a sobrevivência dos EUA?", cerca de 60% dos entrevistados dizem: "sim". Coincidentemente, isso só acontece desde setembro, quando o governo Bush começou esta propaganda. Quase metade da população agora acredita que o Iraque é responsável pelo 11 de Setembro. Antes de setembro do ano passado, quase ninguém acreditava nisso. É uma fabricação completa. Este é um país muito assustado. E muito fácil para um líder inescrupuloso espalhar o medo. E é preciso lembrar quem são as pessoas que estão em Washington agora. São as mesmas que mandaram no país nos anos 80. E foi assim que elas mantiveram o poder. "O Exército da Nicarágua está a dois dias de marcha do Texas", disse Ronald Reagan. "A Nicarágua irá nos conquistar". Foi declarado estado de emergência. "Há uma base aérea em Granada que os russos vão usar para nos bombardear". "Narcotraficantes hispânicos vão transformar nossas crianças em viciadas". A população foi mantida em pânico por uma década. Eles têm de fazer isso para manter o poder.

É possível que a guerra leve a democracia para o Oriente Médio, como diz Bush?

CHOMSKY: Há 40 anos, um golpe militar no Brasil colocou no poder um regime neonazista. O embaixador de John Kennedy no Brasil, Lincoln Gordon, que estava no Departamento de Estado, saudou o golpe como "a maior vitória para a democracia da metade do século XX". Talvez ocorra algo neste sentido no Iraque. E há casos e casos como este. É só olhar para as regiões controladas pelos EUA mais fortemente no último século, como a América Central e o Caribe. Os EUA irão permitir um tipo de democracia formal, aquele que segue suas ordens.


Original em: http://arquivoglobo.globo.com/pesquisa/texto_gratis.asp?codigo=1250558