ESTÉTICA DO "AFUDÊ!", DA TURMA
E OUTRAS IRONIAS/PICARDIAS DO SUCESSO.
por Carlos Badia
 

Desde muito cedo, todos nós convivemos com a necessidade social de pertencer a uma "turma". Se adequar, conviver e pertencer a uma "turma" para um adolescente significa obter o passaporte da aceitação social. Se tiver a sorte de ter no seu círculo social uma "turma" com afinidades reais com sua natureza individual, este processo será orgânico. Do contrário, a pessoa poderá ser induzida a força a se adequar ao "gosto geral", só para ser aceita no seio da "turma", mesmo que isto contrarie sua natureza.

Quando entramos na vida adulta e profissional, percebemos que o fenômeno, para a maioria das pessoas, não só continua como se intensifica, e assume proporções "pesadas", pois o elemento financeiro se apresenta com cruel espontaneidade, intermediário e referencial das atitudes éticas entre as pessoas. Não importa, para muita gente, se você gosta ou não de alguém, se gosta ou não da arte e do trabalho de alguém. Importa a dimensão profissional, o nível de influência social e artística, o grau de relacionamento que a pessoa sobre a qual opinamos, possui. Se eu elogiar alguém ou me abstiver de opinar criticamente sobre seu trabalho, posso então, a partir de sua possível "amizade política", conquistar algum espaço, alguma projeção. Essa estratégia política tem sido usada há muito tempo não só no meio artístico, e não tenho muita esperança de que mude. Apenas quero debater tanto sua existência quanto à hipocrisia que norteia estas relações sociais, políticas e artísticas, cada vez mais. Isto incomoda muita gente, e acaba por manter na mídia e no meio profissional muitas pessoas com pouco talento e com baixo nível de qualidade artística. E pouco se fala a respeito com profundidade.

Sempre me coloquei a certa distância desta discussão por receio de parecer possuir um discurso de quem está à margem e não "agita" muito no cenário. Mas me dei conta de que isto, antes de ser um problema, era e é tão somente uma realidade, que tem de ser considerada com naturalidade: realmente estou a certa distância, e daí? Não faço parte da "turma" geral, e daí? Isto não me rotula necessariamente sobre a égide do "recalcado que reclama por não estar incluído".

O que é importante entender é que, com raras exceções, para passar a fazer parte da "turma", você precisa desligar um filtro crítico fundamental, que quando ativado parece magoar ou aniquilar com trabalhos artísticos ou profissionais/pessoas, que por seu poder político podem fazer você virar um excluído do círculo. Este "temor" parece fazer muita gente "aceitar" coisas que provavelmente não aceitaria se vindas de outra região geográfica, ou de outras fontes. Então se passa a exercitar o "desligar" de toda a crítica que possa negativizar sua avaliação a respeito do que lê, ouve e interpreta. E aí mora o perigo de, em arte, se cair no "aceito tudo", no discurso enganoso e fácil de que tudo é arte. O Ferreira Gullar já abordou isto brilhantemente em seu "Argumentação Contra a Morte da Arte".

Os gaúchos sempre foram belicosos em suas relações, principalmente entre si, por incrível que pareça. Elogiar, principalmente quem é do RS, sempre incluiu uma dificuldade que só era superada quando o sujeito fazia certo sucesso fora daqui, ou seu trabalho conseguia uma certa repercussão fora das fronteiras gaúchas. Muito se comentou negativamente a respeito do corporativismo dos baianos, e de como eles, sem se criticar mutuamente, construíram uma força corporativa e uma linha de frente de ajuda mútua: "me ajuda que te ajudo", sem importar a qualidade artística, mas ao grau de exposição momentânea do sujeito.

Percebo agora no RS, uma certa mudança nesta mentalidade belicosa. Estamos mais baianos e isto significa indiretamente imunizar-se de crítica, ser intocável por ser "in". Tem muitas "personagens culturais" que conquistaram um status de "atual", "up", "in", figura fácil de caderno cultural, que faz "ponta" em "curta", que é entrevistada por todos os programas de rádio e tv, e que independente de sua qualidade artística de fato, criou trânsito fácil no meio cultural local. Conquistou um status de "moderno", nas roupas, nas atitudes, e não importa mais o que ela produz de fato, mas quem ela conhece, por onde ela anda na noite, e que roupa veste para parecer atual, ou antigo, conforme o caso.

Na música em especial o fenômeno ficou escancarado. A começar pelos DJs (repararam que de repente todo mundo virou DJ). Depois, as bandas de publicitários: a maioria dos criadores publicitários abaixo dos 25 anos tem uma banda, cuja inspiração ou referência (para usar um jargão da área) é uma banda inglesa (quase sempre inglesa) que nunca ninguém ouviu falar (a não ser a turma). Ou aquelas bandas de sempre. E por último, uma enorme quantidade de músicos, em especial os que vieram de uma estética "rock", que cultuam o que temos chamado, eu e o Sady Homrich - na falta de um termo melhor - de estética do "afudê". Tudo é bacana, tudo é afudê, numa espécie de deslumbramento psicodélico. Vale tudo: violão desafinado, voz desafinada, bateria desencontrada, colagem de sons destoantes, enfim, tudo é bacana, tudo é permitido, quanto mais casual melhor. Sem falar nos que cultuam o diferente: o não usual, o violoncelo no maxixe do século XIX, o oboé no drum'bass e o escambau (como diria o Aldir Blanc). E na cara de pau o neguinho se apresenta, vai a programa de entrevista, e, pasmem, tem público fiel que lotam shows. Não quero dirigir minha argumentação a um artista específico, pois são vários. Mas acho um absurdo um artista se apresentar num programa com o violão desafinado, a voz desafinada, uma música pra lá de óbvia e banal e o jornalista atribuir genialidade no fim da execução lastimável. Independente de o cara ser legal, isto é absolutamente outra questão. Logicamente é importante distinguir entre dar validade a uma manifestação artística, situando-a em um determinado contexto histórico, cultural e social, com sua apreciação através da crítica do gosto. Eu posso não gostar de música punk sem lhe tirar o valor e sua importância estética, social, cultural e histórica.

Não se trata de ser chato, extremamente exigente e impiedoso, mas de ser razoável, afinal um violão necessita estar afinado, e se espera de alguém que canta um mínimo de afinação. Porque não tocar ao menos no ritmo, sem muita flutuação no andamento da música? Lembro imediatamente dos The Fevers, de muito sucesso nos anos 60 e 70: você podia e pode detestar a música deles, mas deve reconhecer que ao menos, é bem tocada. Mesmo os Sex Pistols, cuja estética era permeada pelo desleixo, não se descuidavam nas suas gravações.

O RS sempre quis ter uma versão local do Clube da Esquina, que unisse forças e invadisse o centro cultural do país. Talvez por reviravolta do destino, e motivado por certa projeção de um maior número de artistas do RS fora daqui (em especial atores e cineastas), parece estar acontecendo uma espécie de "força tarefa gaúcha" para, quem sabe, sair de vez da famosa "festa dos caranguejos", que o Bebeto Alves já cantou (os caranguejos quando capturados e para sair do balde, puxam os que conseguem subir um pouco, para baixo). O perigo disto é evidente. Na onda, vão de tudo, principalmente os "enturmados" de quem falei acima. Já percebi que estão todos muito amigos, todos "sempre se gostaram" (antes da projeção da mídia), e que o senso crítico e estético de repente amainou-se, relaxou e "abaianaram-se" as relações artísticas/comerciais. Esta tudo parecendo o Programa da Hebe, onde todo mundo é gracinha, talentoso e "amigo".

Não sei se é uma fase necessária, para passar para outra, talvez de mais qualidade. Mas de fato, o pessoal da cultura se deu conta, de repente, que a relação comercial, que é secundária, mas nunca menos importante na cultura e na arte, virou prioritária. A conseqüência lógica é uma tendência a anulação do senso crítico em detrimento aos interesses mercantis das relações profissionais no meio artístico. Também não é novidade alguma, e Hollywood já sabe disto desde o início do século passado. Mas é fenômeno novo por aqui, porque se por um lado, a frieza e o distanciamento característico do povo gaúcho tinham sua nocividade, por outro havia um positivo ganho crítico, depurativo (talvez exagerado, eu concordo).

Temos de nos ajudar, é certo. Mas não através da hipocrisia total, somente aquela necessária ao bom convívio humano. Por uma música que no mínimo seja bem tocada e afinada! Por um cinema que não seja só recorte de cenas e repetição "déja vu"!  Pela priorização da arte na arte! E que possamos viver dela, em todos os sentidos.
 

Carlos Badia
carlosbadia@carlosbadia.com
 
 


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