O FALSO PICASSO FALSO
ou
Jornalismo: faça você mesmo.

por Jorge Furtado 19/01/2006 - 14:00


Descobri um Picasso falso. Na verdade, é um falso Picasso falso, já que se trata de uma reprodução sem valor, uma cópia de um quadro muito famoso de Picasso. Não sou especialista em arte, nem em Picasso, nem em falsificações. Não é preciso: basta você olhar com alguma atenção para o quadro verdadeiro e para a reprodução para ter certeza de que se trata de uma cópia. Apesar do óbvio, o “Picasso do INSS” já foi assunto de grandes matérias dos jornais Folha de São Paulo (capa de duas edições, uma delas num domingo, dia de maior tiragem do jornal), O Estado de São Paulo (também matéria de capa), Correio Braziliense, revistas Época e Isto É, sites UOL e Terra, entre tantos outros.

Nenhuma das matérias apontou para a obviedade da cópia, nenhum repórter teve a singela idéia de medir, com uma régua, o Picasso do INSS. Todos, sem exceções, fizeram ironias sobre o descalabro de uma obra de grande valor estar exposta numa repartição pública, muitos reclamaram das condições inapropriadas para a conservação da valiosa obra de arte, muitos fizeram críticas ao despreparo do governo Lula para lidar com a cultura e a arte.

Cansado do assunto e de esperar que alguém se habilite, resolvi fazer jornalismo eu mesmo, aqui no Não. Os leitores da Folha de São Paulo, do Estadão, do Correio Braziliense, da Época, da Terra e do Uol continuarão desinformados. Os leitores do Não, não.



 
O quadro da esquerda é o original e o da direita é a cópia. O original é um óleo sobre tela, colorido, de 99,1 x 80 cm e está no Museu Metropolitan, em Nova York. A cópia, sobre papel, é propriedade do INSS e está em Brasília. Não sei exatamente suas medidas, mas pelas fotos ele não tem mais que 70 centímetros de altura. A chance da ilustração da direita não ser uma cópia da ilustração da esquerda é zero. A chance da ilustração da direita ser de autoria de Picasso é igualmente zero.

A primeira vez que ouvi falar do Picasso do INSS foi em reportagem da Folha de São Paulo, em sua edição de domingo, 7 de março de 2004. Era uma matéria grande, na primeira página, com uma grande foto. A matéria continuava, com outra grande foto, na última página do primeiro caderno. Olhei a foto e reconheci o quadro. Pesquisei rapidamente em um livro e na internet e não tive dúvida alguma de que se tratava de uma reprodução.

Escrevi ao ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, no mesmo dia.

Reproduzo aqui o meu e-mail:

Descoberta histórica ou barriga histórica?

A capa da FSP de hoje (7.3.04) traz como foto de maior destaque um desenho de Picasso na parede de uma repartição pública em Brasília. Ao fundo, um funcionário trabalha sob uma foto do presidente Lula. A legenda: “REPARTIÇÃO: Desenho de Pablo Picasso localizado no acervo do INSS decora desde o fim do ano passado uma das salas da direção do instituto em Brasília”. A matéria completa (pág. A 20) abre com o olho: “DECORAÇÃO BUROCRATA: Desenho do pintor espanhol, que divide moldura com restos de inseto, foi descoberto por historiador”. O texto da matéria, assinado por Marta Salomon, abre afirmando: “Uma mulher desenhada por Pablo Picasso passa os dias debaixo de luzes fluorescentes e em meio à papelada de uma repartição do governo federal”. E segue: “Sob a moldura, havia restos de insetos e uma segunda assinatura do artista espanhol, que indicaria a autenticidade da obra."

O texto não informa mas o desenho, reproduzido na capa e na contracapa do primeiro caderno da Folha, é uma versão em preto e branco do quadro “Mulher em branco” (1923, óleo sobre tela, 99 x 80cm, acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York, coleção Lillie P. Bliss).  A versão descoberta pela FSP deveria ser, é claro, um estudo feito por Picasso para o seu quadro. Achei a descoberta extraordinária. Picasso costumava fazer muitos estudos de suas pinturas mas nenhum que eu conheça se aproxima deste em semelhança ao quadro. O texto não informa a técnica do desenho mas imaginar Picasso, em 1923, planejando no papel os drapeados do vestido da modelo, fios de cabelo e rabiscos nas sombras, antes de executá-los, à óleo, com grande liberdade no uso do pincel, foi para mim uma revelação, algo tão surpreendente que resolvi examinar as fotos com mais atenção.

Só vi as fotos no jornal e o desenho não aparece em detalhe mas afirmo sem medo de errar que o Picasso encontrado pela Folha é uma reprodução. Talvez seja o trabalho de um discípulo esforçado e perfeccionista, estudando à lápis ou aquarela o quadro de Picasso, o que faria da matéria da Folha uma barriga menos grave. (Se bem que podiam ter consultado alguém que conhece um pouco da obra do cara antes de publicar a matéria.) Talvez, o que seria engraçado, seja uma reprodução impressa, encontrável em qualquer revista, lojinha de souvenirs ou na pinacoteca da Caras. De qualquer maneira, espero que nos próximos dias a FSP confirme tão extraordinária descoberta ou peça desculpas e corrija uma tão extraordinária barriga.

Jorge Furtado

Marcelo Beraba não publicou mas respondeu meu e-mail:

Caro Jorge:
 
Peço desculpas pela demora em responder sua mensagem de março passado. Transcrevo abaixo esclarecimentos da Sucursal de Brasília da Folha:
 
"O historiador que acompanhou a limpeza do desenho a pedido do INSS afirma ter encontrado na parte escondida pela moldura uma segunda assinatura de Picasso, acompanhada de numeração. Esta é a indicação de que o Ministério da Previdência dispõe para julgar autêntica a obra originalmente integrante do acervo do artista plástica Santa Rosa, comprado em 1957 pelo antigo Ipase. Diante da dúvida, a intenção do ministério é submeter a obra a um perito. Quanto às cartas dos leitores, há equívocos em ambas. Existe uma tela no acervo do Metropolitan Museum of Art bastante semelhante ao desenho encontrado no INSS. Intitulada 'Mulher sentada com braços cruzados' (e não 'Mulher em branco'), o óleo pintado em 1923 retrata Sarah Murphy e não Olga Khokhlova, sua primeira mulher."
 
Sendo o que tinha para o momento, despeço-me.
 
Atenciosamente,
 
Marcelo Beraba
Ombudsman - Folha de S.Paulo

Respondi o e-mail do Ombudsman.

Alô Marcelo

Obrigado pela sua resposta. Sou assinante da Folha desde o momento em que ela adotou um ombudsman, acho que é o que distingue a FSP dos outros jornais.

De volta ao caso, por partes.

A segunda assinatura de Picasso na gravura encontrada em Brasília é, na minha opinião, mais uma evidência de que se trata de uma reprodução, provavelmente mecânica (como uma foto) ou uma cópia, um desenho feito por um aluno, a partir do óleo original de Picasso. Qual seria o motivo da segunda assinatura? Por que Picasso assinaria duas vezes um original seu? O mais provável é que ele tenha assinado a reprodução, como um autógrafo.

Não confio muito em informações da internet. O livro de Juan Antonio Gaya Nuño (1975, Editor Aguilar), tem na página 111 uma reprodução do óleo  pintado por  Picasso em 1923, (99 cm  x 80 cm) parte da coleção Lillie P. Bilss. Gaya Nuño intitula o quadro “Mujer em Blanco”, mas o quadro é também chamado de “Mulher sentada com os braços cruzados.” O que importa é que é um óleo, colorido, de quase um metro de altura, e não um desenho preto-e-branco de 50 cm, no máximo, como parece ser o que se encontra no acervo do INSS. Não sei se o repórter mediu a gravura, que ele chama de “desenho”.

A matéria sobre o falso Picasso já foi publicada várias vezes. A revista Isto É publicou matéria sobre o assunto em 15/12/1999, mas eles chamaram de “gravura”.

Isto É, Nº 1576
http://www.terra.com.br/istoe/brasileiros/1999/12/10/000.htm

“Há um tesouro perdido e também escondido, uma vez que há obras extraviadas. E mais: qualquer um pode botar um quadro desses embaixo do braço e levar embora”, diz Mota, preocupado com o destino das obras valiosas que já encontrou. Quem não reconhecia o valor dos quadros eram, curiosamente, seus admiradores cotidianos. “Não sabia que tudo isso estava na minha sala”, espanta-se o procurador-geral do INSS, Marcos Maia, que tinha pendurados na parede dois quadros de Santa Rosa e uma gravura de Picasso, todos do acervo pessoal de Santa Rosa.

A revista Época, Edição 283 - 20/10/2003, também fez esta matéria:

Patrimônio: Historiador descobre pintura de Picasso e outras preciosidades esquecidas na sede do INSS em Brasília.

Se quiser conhecer o quadro original clique em:
http://www.metmuseum.org/toah/hd/pica/ho_53.140.4.htm




 Repare:

1.    a posição da assinatura em relação à sombra da mulher.
2.    a posição dos três dedos
3.    a sombra sob o cotovelo direito
4.    os fios soltos do cabelo
5.    os drapeados do vestido, no colo e no decote
6.    a sombra sobre a cabeça
7.    a posição da ponta do nariz em relação ao contorno da face
8.    etc...

Não há dúvida alguma que se trata do mesmo quadro: o da esquerda um original, um óleo, colorido, com quase um metro de altura; o da esquerda uma gravura, preto-e-branco, com, no máximo, 50 cm de altura.

Um abraço,

Jorge Furtado

Esqueci completamente deste assunto por quase dois anos, até o dia 29 de dezembro de 2005 quando, na praia, vejo o Picasso do INSS outra vez na capa da Folha de São Paulo e também na do Estadão. Um incêndio destruiu parte do prédio do INSS mas, para alívio de todos e apesar do descaso dos órgãos públicos, o Picasso foi salvo.

De volta a Porto Alegre, escrevi mais uma vez para o Ombudsman da Folha, Marcelo Beraba. Reproduzo o e-mail, enviado em 4/1/2006 às 09:11:

Picasso em Brasília, de novo?

Mais uma vez um suposto desenho de Picasso foi capa da Folha de São Paulo, agora por ter sobrevivido ao incêndio do prédio do INSS. É incrível que uma óbvia reprodução de um famoso quadro do pintor espanhol seja tratada como peça valiosa. É incrível que a mesma gritante barriga jornalística seja repetida tantas vezes sem que algum repórter ou editor com um mínimo conhecimento de artes plásticas pare um segundo para pensar no assunto e conclua o óbvio ululante: o tal Picasso é uma reprodução, vale o preço da moldura e do vidro.

A Folha não embarcou sozinha nesta canoa furada. O Estadão também deu matéria de capa (29/12/05) com uma estranha manchete: “Um Picasso teria escapado do fogo”, a dúvida é se o quadro escapou ou não do incêndio e não sua autoria.

Tanto as matérias da Folha como do Estado se referem ao suposto Picasso às vezes como “quadro”, às vezes como “pintura”, às vezes como “desenho”, às vezes como “gravura”, mostrando um profundo desconhecimento de artes plásticas. Quando a questão é o valor monetário da obra, a diferença entre uma pintura, um desenho ou uma gravura é gigante. No caso, trata-se de uma reprodução, sem qualquer valor. Dizem que a tal reprodução tem uma “segunda assinatura” de Picasso, o que a transformaria num autógrafo. Pago cem reais por ela.

Nenhum repórter das incontáveis matérias sobre a tal reprodução teve a singela idéia de medi-la, com uma régua. As medidas de um quadro, além da técnica de execução (óleo sobre tela, desenho, gravura...) são as principais informações sobre uma obra. Todos os repórteres estavam mais preocupados em fazer ironias sobre o fato de uma valiosa obra de Picasso estar decorando uma repartição pública.

E mais: a assessoria de imprensa do Ministério da Previdência informa que o tal Picasso foi dado ao INSS “como pagamento de dívida”. Sério? E por quanto ele foi avaliado? Quem avaliou? Tenho profundo interesse em saber quanto o INSS está pagando por reproduções que quadros valiosos. Meu time, o Grêmio, tem muitas dívidas com a previdência e penso em doar ao clube parte da minha pinacoteca Caras (15 reais o fascículo com 4 obras clássicas). Talvez com um Da Vinci dê para comprar um bom meia-esquerda.

Um abraço,

Jorge Furtado

Mandei outra vez para o ombudsman da Folha os antigos e-mails, com as referências do quadro original, etc.

Recebi como resposta, em 04/01/06 o seguinte e-mail:

O texto abaixo é uma resposta gerada automaticamente pela caixa postal de ombudsma@uol.com.br

Prezado(a) Leitor(a):

Obrigado pela mensagem enviada ao ombudsman da Folha de S.Paulo. Esta é uma resposta automática. Suas observações serão apreciadas e, assim que possível, o (a) senhor (a) receberá resposta.

Eu já tinha desistido da história quando, por coincidência, recebi um e-mail de Carlos Marcelo, editor do Correio Braziliense, sobre outro assunto. Em Brasília, o Correio poderia investigar melhor o caso. Quem avaliou o tal Picasso? Quanto o INSS (isto é, nós, eu e você) pagou pelo quadro?

Mandei um e-mail ao Carlos Marcelo:

Alô Carlos Marcelo

Tudo certo? Feliz Ano Novo.

(...)

Outra coisa: mandei uma correspondência ao Ombudsman da Folha sobre um suposto quadro de Picasso de propriedade do INSS, uma óbvia reprodução, tratada como obra de grande valor. Não recebi resposta. Talvez um repórter do Correio possa furar a Folha. O que acha? Te mando meu e-mail.

Abraço, Jorge Furtado

Mandei ao Carlos Marcelo todos os e-mails anteriores, com as referências, etc. Ele me respondeu no mesmo dia, 4 de janeiro. Infelizmente ele estava saindo de férias.

(...)

A história do quadro é ótima - vamos correr atrás. Já pautei a nossa repórter de artes plásticas pra ver se a gente esclarece essa história de uma vez por todas.
grande abraço,
cm
 
No mesmo dia, recebi um e-mail da jornalista Nahima Maciel de Souza Vianna.

Oi Jorge.

Sou Nahima, do Correio Braziliense, e acabei de ler teu e-mail. O texto me foi encaminhado pelo Carlos Marcelo. Até eu já fiz matéria sobre esse suposto Picasso, mas fiz questão de afirmar que nada garantia sua autenticidade. Queria voltar ao assunto e conversar contigo sobre isso. Pode me enviar um fone de contato? Conhece algum especialista que possa argumentar e provar que não há como o desenho (é, definitivamente, um desenho) ter sido traçado pela mão de Picasso?

Aguardo tua resposta.

Obrigada desde já.
Nahima

Respondi no mesmo dia.

Alô Nahima
Tudo bem?

Acho que posso indicar alguém que possa falar sobre a reprodução do INSS. Você tem como me mandar uma boa foto dela? Uma foto com qualidade razoável, frontal, sem reflexos do vidro. Tem como descobrir as medidas do desenho?

Um abraço,
Jorge Furtado

Ela me respondeu no dia seguinte, 5 de janeiro, 14:53.

Jorge, aqui está a foto. É a melhor que encontrei no nosso arquivo. Você acha que é razoável? Não tenho as medidas exatas, mas me lembro bem do quadro e a parte do desenho, sem a moldura, não deve ter mais que 70 cm de altura.

Aguardo tua resposta. Me diga se conseguiu abrir a foto!

Obrigada de novo!
Nahima

Eu abri a foto, era razoável. Botei a foto do Picasso do INSS no Photoshop (um programa de computador para edição de imagens) e comparei com reproduções do quadro original.

Respondi o e-mail no mesmo dia, duas horas depois, às 16:51.

Alô Nahima

Peguei a imagem que você me mandou e comparei (no Photoshop) com o original, que peguei na Internet. Coloquei as imagens lado a lado.

Fiz também uma montagem“xadrez”, uma imagem sobre a outra.

Você ainda tem alguma dúvida de que o quadro do INSS é uma reprodução?

Um abraço, Jorge Furtado


Em anexo, mandei a comparação que fiz entre o original e a cópia:

 (CLIQUE PARA AUMENTAR)

Preste atenção leitor: a imagem acima é uma composição, uma montagem. Coloquei a imagem do Picasso do INSS sobre a imagem do Picasso verdadeiro. Apaguei, em tiras, a imagem da cópia, criando uma composição onde quadrados da cópia sobrepõem-se ao original.

O resultado é de uma clareza surpreendente: todos os detalhes da cópia, a imagem sépia da cópia sobre papel no INSS, correspondem exatamente a todos os detalhes do original, o óleo sobre tela que está no Museu Metropolitan, em Nova York. Não havia mais nenhuma dúvida: o Picasso do INSS é uma reprodução do quadro de Picasso.

Com mais meia hora de análise no Photoshop descobri mais um detalhe, este engraçado: a assinatura do original e da cópia eram idênticas, exatamente iguais e exatamente no mesmo lugar! Mandei o novo estudo para a repórter do Correio, com um e-mail.

Alô Nahima

As assinaturas são idênticas! (os cantos superiores são da assinatura da reprodução do INSS. A metade inferior e o centro são a assinatura no quadro original.)



Manda notícias.

Um abraço,
Jorge Furtado

Pronto! Estava encerrado o assunto. Depois de 7 anos de matérias jornalísticas incompletas (a primeira notícia que encontrei na Internet sobre o Picasso do INSS é de 1999, da revista Isto É), finalmente todos saberiam que o Picasso do INSS era uma reprodução sem valor algum.

Minhas preocupações voltaram quando recebi mais um e-mail da repórter do Correio:

6 de janeiro de 2006 12:27
Para: 'Jorge Furtado'
Assunto: mais sobre o Picasso

Oi Jorge.

Vou entrar em contato hoje com especialistas europeus para ver o que podem falar sobre esse desenho do INSS. Observei com cuidado as imagens que você mandou. É óbvio que se trataria de uma cópia caso a peça do INSS fosse uma pintura sobre tela. Mas sendo um desenho, você não acha que poderia ser um estudo para a tal tela do Metropolitam? (...) Você conhece algum especialista no Brasil capaz de falar sobre o assunto?

Abs
Nahima

Não entendi muito bem a necessidade de se ouvir um especialista sobre assunto tão óbvio, nem senti que a repórter compartilhava da minha certeza de que dois desenhos tão absolutamente iguais só poderiam ser original e cópia. Respondi o e-mail no mesmo dia.

Alô Nahima

(...)  Conheço muitos estudos de Picasso para os seus quadros (os de Guernica e as variações sobre as Meninas de Velásquez são especialmente interessantes) e afirmo, sem medo de errar, que ele nunca fez nada parecido com um estudo detalhado de um quadro a óleo antes de executá-lo. Seus estudos são esboços de composição, traços rápidos e livres. Mas, mesmo que Picasso fosse um obsessivo com Escher ou Hans Holbein, mesmo assim, a semelhança entre a gravura que está no INSS e a pintura “Mulher em branco” deixa evidente que se trata de uma reprodução. A única possibilidade (diria 1% de chance) de aquilo não ser uma reprodução fotográfica do quadro de Picasso (publicada em livro ou revista) é ser obra de um fã maníaco que passou muitos dias copiando o quadro original e depois procurou Picasso, pedindo-lhe um autógrafo. A chance de que o próprio Picasso tenha feita uma cópia perfeita de seu próprio quadro (incluindo uma cópia de sua própria assinatura!) é zero. A chance de ser um estudo para o quadro, idem.

Não conheço especialistas em autenticidade de obras de arte. Posso indicar o nome de dois professores de história da arte, não sei se eles vão se interessar pelo assunto, talvez se divirtam.

(...)

Acho que um especialista em falsificações vai achar a pauta um pouco ridícula, trata-se evidentemente de uma reprodução, de um quadro muito famoso.

Acho que a manchete da sua matéria deveria ser: Picasso do INSS é reprodução sem valor. (ou vão dizer que o Picasso do INSS “é falso”)

Um abraço,
Jorge Furtado

Depois de quatro dias sem notícias, mandei um novo e-mail em 10/01/06:

Alô Nahima

E aí? Alguma novidade no caso do Picasso?
Manda notícias.

Abraço,
Jorge

Ela me respondeu no dia seguinte:

Oi Jorge.

Desculpe o silêncio. Ando fazendo muitas matérias ao mesmo tempo. Mas hoje o dia é especialmente dedicado ao Picasso. Vou tentar o contato com todas aquelas pessoas que você indicou. Queria também saber se posso usar seu último e-mail e nossas conversas como depoimento. Você topa? Acho que seus argumentos instigam a reflexão e são bastante plausíveis. Posso usar na matéria?

Abs
Nahima

Respondi no mesmo dia:

Alô Nahima

Sim, pode usar meus e-mails mas, por favor, tomo cuidado com a revisão ortográfica. Escrevo e-mails sem revisar, esqueço acentos e cometo erros terríveis. Mande notícias.

Um abraço,
Jorge Furtado

Resposta, no mesmo dia:

Pode deixar, Jorge. Vou cuidar direitinho da sua ortografia. Se você lembrar de mais alguém que possa me dar depoimento sobre o tema, me avise tá?

Abs
Nahima

Isto foi no dia 10 de janeiro. Hoje, 16 de janeiro, mandei um novo e-mail:

Assunto: Picasso do INSS

Alô Nahima.

Novidades? Escrevo (com amigos) numa revista na Internet (Não: www.nao-til.com.br) e quero publicar um texto sobre o assunto, mas não quero furar o Correio. Em que pé está a história? Mande notícias.

Abraço,
Jorge Furtado

Recebi a resposta quase que imediatamente;

Oi Jorge.

Publicamos a matéria ontem. Aqui está o link. Dê uma olhada e me diga o que acha... Obrigada pela dica e pelas orientações!!!

O e-mail não tinha um link para a matéria mas sim um anexo em pdf, reproduzindo a capa do Caderno de Cultura (Caderno C) do Correio Braziliense, edição de domingo, 15 de janeiro. A matéria ocupa toda a capa do caderno e traz uma grande foto com o Picasso do INSS, a mesma foto que analisei. (o link da matéria, só para assinantes, é: http://buscacb2.correioweb.com.br/correio/2006/01/15/cd01-1501.pdf)

O título: EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE.

O olho da matéria: Desenho que sobreviveu ao incêndio no prédio do INSS é atribuído a Picasso, mas especialistas levantam dúvidas sobre sua autenticidade. Autoria só pode ser confirmada em Paris.

O texto da matéria, bem escrito e com muitas declarações de especialistas, é uma decepção. Confesso, com o risco de parecer vaidoso, que meu primeiro espanto foi não encontrar na matéria nenhuma referência ao meu nome. Não sou citado. Sugeri a pauta ao jornal, sugeri as fontes, alertei para a evidência da cópia, autorizei – a pedido da repórter – o uso dos meus e-mails, fiz a análise (no Photoshop) do original e das cópias, mandei os arquivos de imagem para a repórter e meu nome nem sequer aparece no texto da reportagem. Eu teria que ficar bem quieto, azar o meu, se a matéria cumprisse o seu objetivo de esclarecer finalmente o assunto mas, infelizmente, o seu efeito é exatamente o oposto.

Mandei um penúltimo e-mail à repórter:

Alô Nahima

O seu texto é bom, assim como a sua pesquisa, mas não gostei da matéria.

Em primeiro lugar, acho que você tinha a obrigação de me citar, uma vez que fui em que sugeri a matéria e levantei a dúvida.

Em segundo lugar, sua matéria, ao invés de corrigir o erro óbvio de supervalorizar a reprodução de um quadro muito famoso, na verdade o repete e o amplia: ao leitor segue viva a idéia de que um “desenho atribuído a Picasso” “sobreviveu ao incêndio do INSS”.

Sua matéria traz muitos depoimentos de pesquisadores que desconfiam do óbvio, mas termina com o depoimento de um historiador que não vê nada “que desabone a autoria de Picasso” e de outro que pergunta: “O que fazia um Picasso no INSS? Verdadeiro ou falso, não tinha nada que estar lá”.

No final, sua matéria indica que o “suposto Picasso” será remetido para o Banco Central para que “fique guardado no acervo da instituição numa reserva técnica com controle de luz, temperatura e umidade. Mas ainda longe dos olhos do público”.

Para que “o desenho atribuído (por quem?) a Picasso não vá fazer companhia a Rosebud, o trenó de Charles Foster Kane, e fique perdido para sempre, vou publicar no Não a série de textos e e-mails que já escrevi sobre o assunto. Você me pediu autorização – e eu dei – para usar meus e-mails na sua matéria. Me sinto, portanto, autorizado a utilizar os seus e-mails na minha matéria.

O título da minha matéria será: O falso Picasso falso.

Um abraço,

Jorge Furtado

Ela me respondeu:

Jorge,

Lamento que você não tenha gostado da matéria. Acho que conversei com pessoas altamente qualificadas e minha intenção não era provar a falsidade do desenho - é impossível fazer isso por meio de fotografias - e sim levantar a discussão. Seria preciso que um especialista avaliasse o papel, os traços e uma série de detalhes que não aparecem em uma foto nem na montagem do photoshop.

Não usei seus depoimentos porque precisei selecionar a quantidade de depoimentos e preferi dar voz a especialistas, historiadores e críticos de arte, além de duas figuras familiarizadas com questões de autenticidade das obras de Picasso.

Quanto a você ter levantado a dúvida sobre a autenticidade do desenho, queria esclarecer que em 2002 escrevi uma matéria sobre o tema na qual inseri um parágrafo inteiro sobre tal dúvida. Recentemente, a Folha fez o mesmo. A novidade seria a comprovada falsidade do desenho. Mas isso, como eu disse, só mesmo confrontando especialistas e o trabalho.

Abs
Nahima

Respondi:

Alô Nahima

Acredito que as pessoas com quem você conversou sejam altamente qualificadas mas, infelizmente, parece que elas não prestaram muita atenção no fato de que o original (as reproduções do original, disponíveis em livros e em muitos sites da Internet) e a cópia (as reproduções da cópia do INSS, na foto que você me enviou e em outras fotos publicadas na imprensa) são idênticas, nos mínimos detalhes, inclusive na assinatura.

Qual é a tese dos especialistas? Picasso pintou um quadro, um óleo sobre tela, e depois fez, ele mesmo, uma cópia perfeita em papel, inclusive de sua assinatura? Ou ele fez um desenho no papel e depois reproduziu, nos mínimos detalhes, inclusive de sua assinatura, num óleo sobre tela? O que eles pensam a respeito disso?

O fato é que sim, é possível, com 100% de certeza, apenas olhando as fotografias, determinar não que o desenho é “falso”, mas que se trata de uma cópia de um original conhecido, muito conhecido. Se o desenho fosse falso, seria muito diferente do original. Ninguém falsifica um quadro exatamente igual ao original e, mesmo que quisesse fazê-lo, não conseguiria.

Não levantei dúvidas sobre a autenticidade do desenho, eu afirmei desde sempre que se tratava de uma cópia. Enviei a você muitas referências de muitas matérias (Isto É, Folha, Estadão, Época, Terra, etc.) que desde 1999 falam do tal Picasso do INSS. Todas estas matérias, inclusive a sua, ao invés de esclarecer o óbvio, reforçam a falsa idéia de que uma obra de arte de grande valor está perdida “nos corredores da burocracia”, vítima do “descaso das autoridades”, “longe dos olhos do público”.

Outra dúvida que sua reportagem não respondeu foi: quanto o INSS (isto é, eu, você, nós todos) pagamos pelo tal Picasso? Em quanto ele foi avaliado ao ser recebido como pagamento de uma dívida com o INSS? Quem avaliou?

Sobre o fato de você não ter me citado na sua matéria, bem, aí não tenho argumentos. Achei que era o mínimo a esperar, mas me enganei.

Este assunto, para mim, está encerrado. Publicarei minha própria reportagem no Não (www.nao-til.com.br), um site que criamos especialmente para ser usado nos momentos em que a imprensa se revela menor que o mínimo esperado.

Um abraço,
Jorge Furtado

Felizmente existe o Não. No dia 10 de janeiro mandei ao Giba Assis Brasil, um dos editores do Não, as imagens do Picasso verdadeiro e da cópia. O Giba não é especialista em artes plásticas mas presta atenção no que faz e raciocina por conta própria e me mandou um e-mail no mesmo dia.

Jorge:

Acertou na mosca. Acho que vale uma matéria pro Não. E, como conseqüência, acho que vale um Não. Um pouco sobre a inépcia da imprensa atual: é impressionante que tu tenha descoberto isso de casa, mas mais incrível é que nenhum dos jornalistas que lidou com o assunto tenha investigado. Claro que tu tinha a vantagem de já conhecer o quadro. Mas o que faltou pro jornalista (pra todos eles) não foi tanto formação cultural, e sim um mínimo de curiosidade intelectual. (...)

Giba Assis Brasil

Para evitar que este assunto se torne eterno e atendendo a sugestão do Giba, resolvi escrever e publicar este artigo aqui no Não.

Só para lembrar:

1.    o Picasso do INSS é uma reprodução, sem valor.

2.    a chance do Picasso do INSS não ser uma reprodução sem valor é zero.

3.    a chance do Picasso do INSS ser de autoria de Picasso é zero.

4.    os especialistas que dizem o contrário não examinaram atentamente a cópia e o original ou não sabem raciocinar.

5.    a pergunta “Quanto o INSS (isto é, eu e você) pagou por uma cópia sem valor de um Picasso?” continua sem resposta.


Jorge Furtado
Porto Alegre, 16 de janeiro de 2006



PS: Em minhas pesquisas em busca de matérias no Google descobri que não fui o único a reparar nas patuscadas da grande imprensa. O jornalista Antonio Martinelli Jr., da revista Caros Amigos, publicou a seguinte nota:

A barriga de Picasso

Em 7 de março último, um domingo, a Folha de S. Paulo destacou na primeira página, com foto e tudo, uma descoberta sensacional: um desenho de Picasso, original, jazia anônimo na parede de uma das muitas salas do INSS em Brasília. “INSS encontra por acaso obra de Picasso”, era o título chamando para a matéria na última página do caderno principal do jornal, onde, também com amplo destaque, contavam-se os detalhes do “achado”. O artista plástico Gershon Knispel, colaborador de Caros Amigos, assim que viu aquilo enviou um e-mail para o jornal: “(...) Trata-se de um erro de reportagem. Não se trata de desenho e muito menos de uma obra original. A pintura original é um óleo sobre tela (...) de tamanho 99 cm x 80 cm (...), se encontra no Metropolitan Museum of New York (...) e é considerado um dos mais importantes retratos do período pós-cubista (de Picasso) e o início de sua fase neo-realista...”.

O quadro é de 1923, chama-se A Mulher de Branco e, se fosse levado a leilão, não teria lance inicial inferior a 25 ou 30 milhões de dólares, de acordo com Gershon Knispel. “Trata-se de uma reprodução”, diz ele, “que talvez não valha mais do que 75 reais.” A Folha de S. Paulo não publicou na seção de leitores a carta enviada por Gershon, na ocasião o ombudsman estava sendo substituído por outro, e não se fale mais nisso, por favor. Que no jargão da imprensa leva o nome de “barriga”.
http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed85/antonio_martinellijr.asp

Resumindo: fora o Não e a Caros Amigos, se você quer jornalismo, faça você mesmo.

Referências ao “Picasso do INSS” na Internet:
http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed85/antonio_martinellijr.asp
http://www.terra.com.br/istoe/brasileiros/1999/12/10/000.htm
http://www.elmundo.es/elmundo/2003/10/04/cultura/1065261373.html
http://www.gara.net/orriak/P05102003/art55563.htm
http://www.lmsur.com.ar/03-10-06/informacion-general.htm
http://www.ayacnet.com/modules.php?name=News&file=article&sid=577
http://www.terra.com.br/istoe/brasileiros/1999/12/10/000.htm
http://www.lacapital.com.ar/2003/10/05/general/noticia_41934.shtml
http://www.gara.net/orriak/P05102003/art55563.htm
http://www.lmsur.com.ar/03-10-06/informacion-general.htm

O original pode ser visto em:
http://www.mcah.columbia.edu/cgi-bin/dbcourses/item?skip=1500