A PIRATARIA DE QUASE TUDO E SUA RESSACA

por Roberto Tietzmann (rtietz@gmail.com)

Estamos chegando ao final da primeira década do século XXI quando a digitalização das mídias se torna uma fonte de oferta infinita de conteúdos inesgotáveis em uma cacofonia de canais que redefinem de forma improvisada toda a estrutura tradicional de busca, distribuição, consumo e atenção dedicada aos conteúdos. Em suma, o vetor da utopia contemporânea aponta para termos acesso a qualquer conteúdo audiovisual (filmes, programas de TV), música, texto, imagem ou notícia com uma agilidade limitada apenas por dois fatores: a nossa capacidade de formular com clareza o que desejamos encontrar e a velocidade de conexão à rede.

O lado subversivo desta utopia é que ela, traduzida em bom português, significa que as pessoas têm uma curiosidade voraz infinita por conteúdos que provavelmente não são inteiramente atendidos pelos meios tradicionais. Mas que podem ser baixados de algum aleph intangível chamado de internet respeitando leis ou as desprezando completamente. Em suma, tudo o que existe registrado pode ser duplicado e copiado em uma reprodução perfeita. Tudo o que está registrado e digitalizado pode ser pirateado, distribuído em uma curiosa economia sociodigital definida por fãs, curiosos e colecionadores.

Nela a mera centelha de curiosidade pode colocar o interessado frente à possibilidade de baixar o conteúdo para assistí-lo posteriormente. Sejam filmes novos ou antigos, músicas de ontem ou hoje, desejar consumir um produto cultural hoje já vem conectado com a promessa de que ele está ao alcance no tempo e no espaço por ser distribuído em rede. Não está em lugar algum e está em todos ao mesmo tempo. Não é inatingível nem tampouco raro. Raridade é a medida de sua ignorância ou falta de interesse. Está ali, você é que não sabe ou não quer pegar.

Outra contrapartida da utopia é o abandono de qualquer suporte material para os conteúdos. As velhas e conhecidas formas dos produtos culturais se tornam interfaces e produtos que as simulam e nos devolvem a segurança do que foi perdido: a materialidade que nos dá um viés de segurança, um lugar onde sabemos que o suporte físico do conteúdo está.

Como todas utopias, esta também esconde suas rugas e imperfeições. Incompatibilidades da tecnologia, perdas catastróficas de dados e a complexidade do processo de buscar, baixar e consumir são apenas as mais imediatas. A ampla conivência com a não-remuneração dos autores das obras também pode conduzir o sistema a se alimentar apenas do que já foi produzido, sem se tornar viável como uma plataforma para novas mensagens complexas. Ou seja: estamos trocando um "2001 Uma Odisséia no Espaço" por dois milhões de vídeos do "Esquilo Dramático" no Youtube? Não sei. Na verdade, ninguém sabe. O conhecimento em mais este momento do audiovisual está se constituindo coletivamente, em uma prática de apropriação guiada pelo desejo de ver e a curiosidade do que assistir.

E então, está com curiosidade de ver o quê?

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Roberto Tietzmann é professor universitário de cinema e publicidade.

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