BRASIL x MARROCOS
Notas de quem não está muito atento ao jogo
 por Gustavo "Mini" Bittencourt (mini@opensite.com.br)
 
 
 
Começo a escrever este texo precisamente às 16:50 segundo o Galvão Bueno na pequena TV instalada aqui na criação da agência onde trabalho. Tenho poucos companheiros aqui: dois jogam Quake na Internet e o Marcelo dá uma de workaholic vasculhando Image Banks atrás de fotos para alguns anúncios.

Desde o início do jogo do Brasil divido minha atenção entre um computador conectado à Internet e a TVzinha. Procurei um terminal próxima à TV. Apesar do meu interesse ser infinitamente menor do que a média da população brasileira, não consigo ficar muito concentrado aqui na tela.

Estava navegando por um site com um capítulo não publicado de Geração X do Douglas Coupland e o estilo confessional do astro canadense me fez sentar aqui e escrever para vocês.

Agora há pouco me trouxeram uma Budweiser. Faz tempo que não bebo assim, despreocupadamente, às 5 da tarde durante a semana. Aliás, nem tenho bebido muito nos últimos tempos. Durante o fim-de-semana passado inteiro o máximo que fiz foi encher a cara muito de leve com o pessoal da banda num encontro absolutamente família na nova casa do Marcos e de sua namorada.

Vinte e três minutos e 50 do primeiro tempo, um a zero Brasil. Ronaldinho foi atacado violentamente na coxa por um marroquino. O Galvão Bueno parecia uma histérica no momento da falta. Fosse isso permitido, teria ele descido lá e mostrado um cartão vermelho para o sujeito.

Muita gente que não acompanha futebol não entende a paixão dos milhões que sofrem, suam, choram, se desmancham nas mais diversas emoções frente a uma TV durante a Copa.

Eu consigo entender. Tenho essa ligação com outras coisas. Todo mundo tem com algo.

No meu caso, durante...

Porra, o Cafu passou voando pela lateral direita e só foi parado na beira da grande área... o cara parecia um foguete.

Bem, como eu estava falando, até um tempo atrás eu tinha ligações dessa maneira. Era com determinadas bandas do rock dito alternativo: Nirvana, Pavement, Pixies, Mudhoney etc. Ou então do rock mais bem passado: Cream, Jimi Hendirx Experience, The Who etc.

Eu diversas vezes passei mal - fisicamente inclusive - lendo resenhas sobre shows bombásticos e legendários dessas bandas. As fotos traziam nas platéias jovens tão jovens quanto eu e tão entusiasmados quanto eu estaria no lugar deles. Uma angústia tomava conta de mim e eu jurava a mim mesmo que um dia moraria no exterior só para poder assistir toda semana a todos os shows que eu quisesse.

Não vou nem comentar da aflição que vinha depois de assistir a vídeos dessas bandas fazendo ao vivo tudo aquilo que nenhuma banda brasileira de rock conseguiu. Quando eu conseguiria ver aquilo tudo com toda a energia que só uma apresentação ao vivo tem?

Felizmente os apaixonados por futebol não têm esse problema. A maioria deles tem seu time do coração na sua própria cidade. Nem sempre são times de primeira linha (Kurt Cobain também não era o melhor guitarrista do mundo), mas são seus times do coração. Estão presentes. Sustentam aquela necessidade de paixão e adrenalina ao vivo.

Esse é o paralelo a que me refiro: paixão, emoção e sangue quente correndo nas veias toda vez que temos contato com algo como futebol e música.

(Brasil 2 a zero. Rivaldo no cruzamento de Cafu. O pessoal que está assistindo ao jogo no telão está fazendo um escândalo.)

Com eu estava dizendo antes do Rivaldo conseguir fazer um país inteiro sentir-se mais leve e alegre em meio a um mar de problemas sociais e econômicos (isso é um elogio), ninguém sabe como surge esse tipo de conexão apaixonada. Pode ser por futebol, por música, por quadros, por carros e, a mais comum de todas, por outra pessoa que queremos desesperadamente para nós durante o resto da vida.

Você se lembra da primeira vez que torceu pelo seu time? Que sofreu com um gol chorado? Que comemorou durante um pedacinho de segundo (uma eternidade que a física não explica) uma bola na trave pensando que tinha entrado? Que agradeceu a Deus por seu time ter sido campeão, ainda que tenha amaldiçoado o Todo-Poderoso dois gols antes?

Certamente. Essas são marcas que nem Omo Máquina tira da lembrança. Agora, você sabe explicar por que isso aconteceu da primeira vez? Hoje é até explicável: há anos você torce para o time tal. Mas, da primeira, vez, de onde surgiu esse sentimento? Influência do pai não explica, senão hoje estaríamos todos escutando Ray Connif e Richard Claydermann.

Mas a gente não procura nunca examinar esse tipo de sentimento. (3 a o para o Brasil. Ronaldinho veio disparado pela esquerda, deu uma olhadinha para ver quem estava ao lado - ah, o slow motion -, tocou de leve e foi só o Bebeto colocar no fundo da rede. Confesso: agora bateu a emoção.)

Como eu estava falando, esse tipo de coisa nunca é questionada. Sob um certo aspecto, isso é chamado de contaminação mental. Esse conceito diz respeito ao raciocínio humano e suas associações automáticas. Só para resumir: por uma série de mecanismos, os seres humanos tem o péssimo hábito de conferir características às coisas ou pessoas como se isso fosse inerente a elas.

As Budweiser estão começando a fazer efeito.

Vamos ao exemplo corrente. Imagine uma animadíssima final entre Brasil e Argentina. Para milhões de pessoas, no caso os brasileiros, a Seleção Brasileira e Deus é a mesma coisa. Eles são os salvadores, os defensores da honra nacional. Perder para os argentinos nem pensar. A Seleção Argentina é um demônio a ser combatido. Uma suposta derrota traria um silêncio nacional durante alguns segundos após o fim do jogo.

Por outro lado, há centenas de quilômetros daqui, o cenário é outro. Brasileiros são a epítome do mal enquanto os jogadores Argentinos são como um exército guardando fronteiras morais. Ai do Brasil de invadi-las e acabar com elas. Mesmo porque a Seleção Argentina é infinitamente melhor do que a Brasileira. Ronaldinho é um embuste.

O que está em jogo, nessas horas, não é a qualidade técnica de cada um dos times, mas a relação que suas torcidas tem com elas. Dentro desse exemplo grosseiro temos presente uma das mais notáveis contaminações mentais do ser humano. Brasil e Argentina são duas seleções que, a despeito de sua técnica, para milhões de pessoas guardam características inerentes que na verdade não existem.

Com uma simples mudança de ponto de vista, Ronaldinho passa de herói a vilão. E nele, dentro dele, no futebol dele, não há qualquer uma dessas caracterísitcas. Ele apenas cumpre sua tarefa de meter a bola no fundo do gol. Ponto.

Assim como durante os jogos Ronaldinho é herói ou vilão, durante nosso dia-a-dia atribuímos diferentes significados a nossos pais, namoradas irmãos, CD´s, livros, carros, dinheiro, emprego etc etc etc.

O resultado disso é que passamos a vida inteira fazendo coisas sem saber por que. Simplesmente nos deixamos levar pela maré, na maioria das vezes escorando-nos em argumentos como "é a minha vontade, é o meu gosto" na versão jovem rebelde e "é o melhor para o meu futuro" na versão adulta.

Enfim, estou apenas viajando. Futuro não existe. Assim como o passado. Em física quântica se diz que nada é, tudo está. No momento, eu estou atrás de outra Budweiser. Chega de viajar.

Agora já perdi a porcaria do bookmaker. Coloquei 2x1 para o Brasil.