O ENCANTAMENTO SUBLIME
por Carlos Gerbase
 
 
"(A imprensa) é parte integrante do poder brasileiro, portanto se conduz em conformidade com isso. Hoje, esse comportamento está evidenciado com mais peremptoriedade com essa disputa pela privatização das telecomunicações. Essa disputa cria a necessidade de fazer negócios com o governo, que tem na mão a alavanca. Então, a tendência da imprensa é a de se extasiar diante do governo. É o êxtase, é o encantamento sublime."
 
Mino Carta, entrevistado por Fernando Paiva, na Revista da Comunicação número 51 (abril de 1998)
 
 
A ilustração aí em cima é a capa da Zero Hora de 26 de agosto de 1994. Eu costumo mostrá-la, em todo início de semestre, para meus alunos de Introdução à Fotografia da FAMECOS-PUC. Eu pego a capa (a original) e passeio com ela pelas fileiras da sala, para que todos possam examinar de perto a foto e as manchetes. Também costumo ler os títulos principais: "Campo exibe otimismo na expointer do real" e "O ouro ao vivo". E então faço a pergunta: "Por que estou mostrando essa capa pra vocês?" E ninguém responde.

Mas eu insisto: "O que estava acontecendo em agosto de 1994?" Ninguém lembra, é claro, mas eu ajudo: "Estava acontecendo a campanha para presidente do Brasil e governador do Rio Grande do Sul. Vocês lembram quem eram os candidatos?" Sempre tem algum aluno brilhante que lembra: "Fernando Henrique e Lula; Britto e Olívio." Dou os parabéns (acredito que o incentivo é uma poderosa arma pedagógica) e sigo em minha cruzada: "Por que estou mostrando essa capa pra vocês?" Silêncio total.

Paro, sacudo a capa no nariz deles e dou uma última chance: "Por que esta foto está aqui, ampliada desta maneira, cortada desse jeito, rodeada por essas manchetes?" E ninguém responde. Silêncio total. Então levanto o antebraço direito, formo com o braço um ângulo de noventa graus e abro a mão, deixando-a espalmada, os cinco dedos separados, igualzinha às mãos que estão na foto da capa da Zero Hora. E finalmente cai a ficha. Alguém grita: as mãos do Fernando Henrique. E então todos vêem. Lá estão elas, quatro, os símbolos da campanha vitoriosa de FHC, ladeados por uma lista de palavras altamente "positivas": otimismo, real, ouro, vivo.

Então faço a última pergunta: "Vocês acham que é coincidência?" Mais uma vez, o silêncio. Às vezes alguns aluno pedem para olhar a capa mais de perto. Eles pegam, examinam e depois riem. Rimos todos. Rimos principalmente dos professores que um dia nos disseram que o jornalismo era uma profissão acima de ideologias, que o jornalista deve ser neutro. Neutro quem, cara pálida? Tão neutro quanto aquela capa de Zero Hora?

Não sei se vocês sabem, mas a propaganda subliminar clássica, aquela que insere fotogramas (no cinema) ou frames (em vídeo) contendo mensagens ou imagens motivacionais numa peça audiovisual é proibida em qualquer nação civilizada. É um crime porque o espectador não tem defesa contra um comando que penetra direto no inconsciente e pode despertar sensações bem ali onde elas nascem, no fundo escuro do nosso pobre cérebro subutilizado.

E esta é, na minha opinião, a essência desta capa: um exercício magistral de propaganda subliminar. A Zero Hora dizia-se "neutra" no jogo eleitoral. Nem FHC, nem Lula. Nem Britto, nem Olívio Dutra. E era capaz de imprimir algumas dezenas de milhares de capas, exibidas em milhares de bancas em todo o estado, com aquelas mãozinhas abertas, embaladas nas palavras otimismo, real, ouro e vivo. E aquelas mãozinhas iam direto para o fundo do cérebro dos leitores (e até dos analfabetos), onde jaziam adormecidas, até serem despertadas pelos comerciais e pelo programa de Fernando Henrique na TV, agora associadas a um candidato, a um número, a um voto. Caiu a ficha? Isso é que é neutralidade!

Ou você pode achar que eu sou o maior paranóico de todos os tempos. É seu direito. Você pode achar que foi tudo uma grande coincidência: aquela ampliação, aquele corte, aqueles títulos, aquelas palavras. Tudo bem. Então recomendo a leitura atenta da monografia de minha aluna Árima Delfim Corletto, "A falsa imparcialidade fotográfica de Zero Hora", em que há uma análise cuidadosa do comportamento do jornal (manchetes, diagramação, fotos) durante toda a campanha eleitoral de 94. A capa lá de cima não é um caso isolado. De jeito nenhum. Apenas é a peça mais eficiente, pois é subliminar.

Mas você pode ler a monografia inteira e ainda achar que foi tudo uma grande coincidência. Que esse "Big Brother" não é tão grande assim. Que estou exagerando. Então dou uma última informação: o editor-chefe de Zero Hora em 1994, depois de sair do jornal e passar algum tempo em São Paulo, está outra vez trabalhando em Porto Alegre. Mas não trabalha mais para a Zero Hora. Está trabalhando para o governo do estado do Rio Grande do Sul. Que coincidência espantosa! Como este mundo dá voltas!

E o mais fantástico disso tudo é que todo mundo acha isso super-normal, super-profissional. Assim como é normal um governador vender a empresa de telefonia estatal para a empresa privada que o teve como funcionário por muitos anos. A mesma empresa que possui o jornal que fez aquela capa lá de cima quando seu ex-funcionário era candidato. Isso é mais que coincidência. Nas palavras de Mino Carta, "é o êxtase, é o encantamento sublime."

A capa de Zero Hora do dia 26 de agosto de 1994 talvez não seja o resultado de uma maquiavélica reunião de editores mal-intencionados, e sim o natural e até compreensível resultado desse "encantamento sublime", dessa necessidade diária, quem sabe até inconsciente, de mostrar serviço aos donos do poder e a seus representantes. Mas, sendo uma coisa ou sendo outra, NÃO é uma coincidência, NÃO é neutra e, principalmente, NÃO cheira bem.