O UNIVERSO DE OTTO GUERRA
cineasta gaúcho abre fogo contra os "grupos" locais
enquanto prepara novas produções para 98
 
 
Se você freqüenta botecos do tipo Garagem Hermética, Elo Perdido, Ocidente e Lancheria do Parque (entre outros), certamente já topou com meu entrevistado desta edição do CAC, o cineasta e animador Otto Guerra. É um pintinha esquisito, com óculos "fundo de garrafa" e cabelos já começando a branquear - uma figura que parece mesmo ter saído de uma história em quadrinhos. Olhando assim, ninguém imagina que o cara é o responsável por filmões como "O Reino Azul", "Novela", "Rocky & Hudson - Os Caubóis Gays" e muitos outros.

Conheci Otto mais intimamente (claro que não é o que vocês estão pensando, seus babacas!) no Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá 97, onde aliás tomamos todas na conta dos caras. Ele estava apresentando seu último (e multipremiado) curta "O Arraial", realizado em parceria com Adalgisa Luz. Deste encontro surgiu minha admiração e amizade pelo mestre Otto, que agora se consolida nesta entrevista. Foi num clima etílico e cordial que fui recebido nos estúdios da Otto Desenhos Animados para este bate papo que vocês estão prestes a ler. Queridos leitores, bom divertimento!

ZANELLA: Nome completo?

OTTO: Otto Guerra Netto

ZANELLA: Gaúcho de onde, tchê?

OTTO: Porto Alegre. Nasci na Beneficência Portuguesa em 5 de março de 56.

ZANELLA: Casado, solteiro ou disponível no mercado?

OTTO: Hããã... Na verdade é inclassificável.

ZANELLA: E com 42 anos ainda come alguém? Até porque você é uma cara que está sempre rodeado de belas ninfetas.

OTTO: Enquanto funcionar tamos indo. E depois dos 50 começa a não funcionar mais direito, né? Mas esta história das ninfetas é um mito, uma propaganda enganosa. Tem até uma música de uns caras que eu gosto muito, o Plato Divorak e o Frank Jorge, que cita o meu nome e faz esta ligação aí - e eu nunca sei se é uma homenagem ou se é um deboche.

ZANELLA: Time para qual torce?

OTTO: Há muitos anos eu torcia pro Internacional, na época do Bráulio. Eu gosto do Inter, e recentemente até fui a alguns jogos com a minha sobrinha. Era bem quando o Christian tava surgindo, e nós ganhamos do Grêmio. Mas na verdade eu sou mais anti-gremista do que colorado.

ZANELLA: Você tem curso superior?

OTTO: Eu fiz um tempo Filosofia, um pouco de Arquitetura e Comunicação. Fiz várias tentativas: Unisinos, Puc e Ulbra. Na Ufrgs nunca passei.

ZANELLA: Como começou seu interesse por cinema?

OTTO: Eu fazia histórias em quadrinhos desde criança, aquela coisa de débil mental mesmo, que deixava o pai e a mãe preocupados. E não gostava de super-heróis, eu gostava dos europeus, o Hergé, o TinTim, Blake & Mort, umas histórias mais humanísticas e ao mesmo tempo super pré-conceituosas, sem nexo, politicamente incorretas, ultra direita. Se por um lado o desenho era muito bom, por outro o conteúdo era muito mal, né? Então eu virei um perfeito débil mental. Eu desenhava histórias onde os heróis eram os militares e os bandidos os guerrilheiros.

ZANELLA: E daí pro cinema, como foi?

OTTO: Foi uma questão bem prática mesmo. Foi grana, foi por dinheiro. A publicidade tem grana imediata, você faz o filme e recebe a grana ali na hora, entendeu? Então eu fui pra propaganda, usei meu desenho pra fazer desenho animado publicitário. Durante 4 anos eu fiz só publicidade. Isto era 77 e eu trabalhava na produtora dum argentino. Lá fiz a formiguinha da Fin-Hab, fiz o cofrinho Apesul do Zezinho e Bolão, lembra? Fiz até uma abertura pra RBS, mas esta não vou contar porque tenho vergonha. Eu nunca acreditei na propaganda, fiz sempre em função da grana. Até gosto da propaganda... mentira, não gosto não! Até tenho algum respeito porque através da propaganda eu consegui o dinheiro pra comprar meu equipamento, mas de fato não é o negócio da dedicação, né? Aí comecei com cinema.

ZANELLA: Fale um pouco de "O Arraial" e da polêmica em torno de "O Cavaleiro Jorge", seu próximo curta.

OTTO: "O Arraial" tem esta coisa circunstancial de que cada projeto se viabiliza das formas mais estranhas e improváveis possíveis. O filme tem uma temática nordestina porque foi feito um concurso nacional pelo Instituto Goethe através da iniciativa de um alemão que mora na Bahia, um cara chamado Peter Przygodda, que é montador do Win Wenders. Foi feita uma chamada em POA, pintaram alguns realizadores daqui e foram selecionados 2 projetos, o meu e da Ada e o do Jorge Furtado, que é "A Matadeira". Na verdade ia ser um filme só, mas as idéias eram muito diversas e realmente interessantes. Aí surgiu a hipótese de se fazer 7 curtas, que seriam "Os 7 Sacramentos de Canudos". Eu diria que "O Arraial" só não agradou em Gramado. A recepção do público e do júri foi muito ruim, e a sessão um grande fracasso. Eu fiquei realmente frustrado com a falta de reação. Mas no nordeste, tanto na Bahia como em Recife, e em Cuiabá (que não é nordeste mas é lá pra cima), o filme se deu bem. Em Recife foi o Melhor Filme de Animação e a reação da platéia, um cinema com mais de 3 mil pessoas, foi emocionante, cara. Tudo que a Ada imaginou quando fez o roteiro aconteceu, as pessoas entenderam e reagiram às piadas, sacaram as histórias que são super sutis...

Em relação ao "Cavaleiro Jorge", o que aconteceu foi o seguinte: nós távamos produzindo "O Arraial", que é um filme que ficou pronto em julho último, e távamos com outro contrato assinado com o Fumprorte e com a Finep. Na verdade eu cometi o erro tradicional de sub-orçar os filmes, pra pegar a grana que os caras dão. Então eu tava com este problema de estar com o filme pela metade e ter que terminar dentro de um prazo, e se não cumprisse com o prazo os caras iriam me processar, o que está acontecendo. Aí eu fiz uma manobra, que foi chamar o Maia, um cara que é meu sócio há dez anos, e a Flávia Seligman, que é uma produtora respeitada, é minha amiga e trabalha super bem, para que simultaneamente enquanto eu fizesse "O Arraial", eu transferisse a direção de "O Cavaleiro Jorge" pro Maia e a produção pra Flávia. A manobra a que eu me refiro é que eu, como Otto Desenhos Animados, não poderia entrar no concurso do estado em razão de estar com "O Arraial" em produção, pendurado. Então de fato uma manobra, uma história eticamente discutível, mas a nossa intenção - e de bem intencionados o inferno tá cheio - era produzir o filme num prazo onde não houvessem conseqüências desastrosas. E a partir daí foi um julgamento e uma condenação pública. Houve uma denúncia da APTC para o Governo do Estado onde eu estaria tentando dar um golpe. Logo eu, que sempre coloquei dinheiro meu e da minha família em cinema, tanto que não tenho nenhum bem, tudo que tenho é alugado. Tô há 20 anos no mercado e, de repente, passo a ser tratado como ladrão. Então, é uma coisa que... sei lá, se eu não tivesse trabalhando com estes caras há anos, eu até compreenderia eles estarem achando que eu estou tentando dar um golpe. Mas o que eu poderia fazer? Pegar o dinheiro e fugir pra Cuba, pra Indonésia.

Mas algumas coisas boas também tão acontecendo: nós não tamos devendo pro Governo do Estado, eu saí da APTC - e deveria ter saído antes - e também desvinculei a minha história com a Casa de Cinema. E "O Cavaleiro Jorge" vai sair de uma forma ou de outra, apesar da APTC, apesar do Governo do Estado, apesar desta trouxisse toda. O filme vai sair!

ZANELLA: E o projeto de adaptar os quadrinhos do Angeli pra o cinema?

OTTO: Já faz um tempo que eu penso em adaptar o trabalho do Angeli para o cinema, apesar de que a Rê Bordosa já é uma personagem antiga, anos 80. Aí fui procurado por uns empresários portugueses e há uma boa chance da gente começar a produzir a partir de junho 80 episódios de 1 minuto com as tirinhas do Angeli. É uma coisa legal por um lado, e por outro é um puta risco que tá se assumindo, porque tu não pode furar em compromissos deste tipo. Tem que assinar o contrato e cumprir, e tem que ter qualidade e prazo, né?

ZANELLA: Como você vê o mercado de produtoras de cinema e tv em Porto Alegre?

OTTO: Eu acho um chinelagem, provinciano pra burro, uma tristeza. Sem dúvida você conviver num meio cheio de picuinhas e de pequenos grupos que ficam se degladiando e querendo detonar um com o outro é uma merda, né? É claro que é legal haver concorrência, mas a coisa tem que evoluir. Estruturalmente, não só no RS, isto é um fenômeno brasileiro, o grupo que surge detona o grupo que estava, e não aprende nada. Pelo simples fato de serem novos, pela exaltação da juventude. E, por outro lado, os caras que são da antiga também tem um preconceito em relação aos novos, por acharem que eles são burros. E aí, desde que eu me conheço, e há 20 anos que eu trabalho com cinema, nós estamos nesta mesma questão. Eu acho que poderia ter uma maior oxigenação da cabeça das pessoas se houvesse uma discussão em cima dos problemas ou das soluções das coisas em termos de conteúdo, de linguagem, discussões em cima de evoluir o que se tem em cinema por aqui. Então, eu acredito que o grupo cinema teve este fenômeno dos anos 80 - que eu participei como produtor, portanto não estou me excluindo dele - e isto ficou uma coisa em si e morreu. Dali nada saiu, não houve uma continuação. Morreu, tá morrendo, em processo de decomposição, e vai surgir uma outra coisa agora. Poderia ter havido uma integração das pessoas, daqueles produtores em determinada época, pra aprender uns com os outros. O que aconteceu foi uma grande briga entre todo mundo, e surgiram estes grupos, que são os da animação, a Casa de Cinema, o grupo do "Lua de Outubro" e o grupo dos novos.

ZANELLA: Você vai ao cinema? Cite algum filme que lhe chamou atenção ultimamente.

OTTO: Sou um consumidor médio. Vou ao cinema 2 ou 3 vezes por mês, depende da época. Ultimamente gostei de "Melhor Impossível", me diverti bastante com aquele personagem do Jack Nicholson. E, a princípio, gostei de "Central do Brasil", mas depois me dei conta que era um pega-ratão ducaralho, né? Vi lá em Recife, numa sessão bem quente, com 3 mil pessoas na sala, todo mundo vibrando. E eu entrei junto, chorei e não sei mais o quê... Achei bem legal e fiquei feliz porque é importante ter filmes brasileiros que não sejam bobagem. Mas na verdade o filme é uma bobagem, infelizmente. Pra mim, o cinema brasileiro atual é Carlão Reichenbach - este faz filmes que eu gosto, respeito e fico admirado. Outro filme muito bom, do Limongi, super gay, é o "Bocage - O Triunfo do Amor". Quer dizer, tem coisas boas no cinema brasileiro, e tem estas coisas tipo "O Quatrilho". De "O Baile Perfumado" eu gostei, cara. Estes caras são uns gurizões da pesada, são do Recife. Gostei também do filme do Buza Ferraz, super gay também, o "For All - O Trampolim da Vitória". "Um Céu de Estrelas" não vi.

ZANELLA: E da produção gaúcha, dá pra destacar alguma coisa?

OTTO: Eu gostei do "Bola de Fogo", da Martinha Biavaschi, que é da minha geração. E, não é pra puxar o saco de vocês, gostei muito do trabalho do Zanella e do Trein, com "Snuff Movie" e "Escuro". Gostei mesmo, é uma renovação. Eu tenho é um certo preconceito em relação ao trabalho de quem segue o pessoal da Casa de Cinema. Acho uma coisa super ultrapassada, datada e de adoração. Tipo assim: os caras adoram Jorge Furtado, adoram aquela coisa do Torero, isto sei lá, não me agrada. Esta coisa do conteúdo não adianta: por mais que você tenha condições técnicas, isto não resolve o questão da trouxisse do conteúdo, da merda que é dita, entendeu? Dos trabalhos recentes da Casa de Cinema, o único que eu gostei foi o "Deus Ex-Machina", do Gerbase. "Sexo e Beethoven - O Reencontro" eu achei uma grande pilantragem. Mas o Gerbase é um cara que eu gosto, apesar de neste momento eu estar com bronca da Casa. A APTC virou uma espécie de quintal da Casa de Cinema, quem manda na APTC é a Casa de Cinema, monopolizando o cinema gaúcho. Os caras tem a maior boa intenção, querem fazer a coisa certa, mas isto não os isenta de grandes bobagens, grandes trouxisses. E eu descobri neste episódio do "Cavaleiro Jorge" que a maioria pode ser burra, e é burra. Então eu tou em crise com este negócio de grupos. Estou em crise, não quero saber de associações e nem de votações, pois isto pode ser uma grande armadilha, e você acabar sendo capturado, crucificado, morto e enterrado.

ZANELLA: Pra fechar, deixe uma mensagem carinho, incentivo, fé e esperança para os novos cineastas gaúchos.

OTTO: A fé é uma coisa que você não consegue inventar, e isto é uma coisa terrível. Na verdade quando você se envolve numa atividade como cinema, você é vítima dela e não existe uma coisa racional pra ser dita, do tipo: Gente! Façam isto, ou façam aquilo! Não tem, você é vítima de uma história que vai te botar numa furada, numa roubada. Vai passar vergonhas terríveis, vai ser ridículo, vai estar exposto. Mas o cinema é uma poderosa força que pode transformar as coisas, e deve ser usada com racionalidade.

CRISTIANO ZANELLA

crzan@zaz.com.br
 
 



ENTREVISTA ORIGINALMENTE PUBLICADA NO JORNAL COOPERATIVA ARTIGO DE CINEMA

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