RICO
por Mini
 
 
Fazia um calor danado em Berta. As folhas secas se esmigalhavam quando alguém pisava em cima, produzindo um ruído característico. O clima quente em Berta era assim: sonoro. Uma verdadeira orquestra de arfares, suspiros e folhas esmigalhadas. Mas isso na rua. Em casa, Rico bebia água gelada direto da garrafa enquanto escutava um pouco de música. Folheava umas revistas velhas quando, num clarão mudo, um anjo apareceu na sala da sua casa. Um anjo.

"Oi, cara."

Não era só um anjo. Era um anjo que falava "cara".

"Que calor filho da puta."

Também falava palavrões, enquanto se abanava com uma espécie de roupão branco que vestia. Era um anjo, sim senhor. As asinhas, o cabelo loiro, a pele alva e o camisetão branco não deixavam dúvidas.

Rico olhou para a garrafa de água e logo a seguir para a novidade no centro da sala.

"Vou me sentar aqui, cara."

Rico deu mais um gole na água. As as mação do rosto do anjo reluziam avermelhadas. Estava realmente muito quente.

"Você é um anjo." disse Rico.

"E você é um gênio." debochou o anjo. "Por favor, cara, me dá um gole disso aí."

As mãos delicadas do ser alado pegaram a garrafa e ele bebeu no gargalo por alguns instantes. Parecia aliviado.

"Ah... que calor desgraçado. Tenho que falar para o Pedro maneirar..." apontou para a garrafa. "Isso é água?"

"É."

"Pensei que fosse vodca."

O anjo ficou se recompondo, se abanando e olhando a mobília em volta. Cantarolava uma melodia religiosa.

"É... você tem um belo apartamento."

"Obrigado." disse Rico enquanto pegava a água de volta.

"Você não tem nada mais forte para beber aqui?"

"Anjos bebem?"

O anjo sorriu ironicamente.

"Aos galões, meu caro. O paraíso é um lugar chato. Deveras chato."

"Você é um anjo da guarda?"

"Ah! Meu Deus do céu. E vocês ainda acreditam nessa história... pensei que o pessoal aqui embaixo já tinha parado com essa..."

Rico ficou olhando o anjo. Tinha feições estranhamente lindas. A pele era lisa e, aparentemente, macia. Os cabelos brilhavam em um tom dourado como se tivessem luz própria. E, o mais interessante: não fosse o modo grosso como se portava, Rico poderia dizer que o anjo não tinha sexo.

"Rapaz, eu tinha uma coisa para lhe falar mas não consigo me lembrar... oh, droga, eu vim até aqui só para isso..."

O anjo ficou se debatendo por alguns instantes com a cabeça entre as pernas.

"Oh, o que era mesmo? Como eu sou cabeça de vento..."

Rico começou a ver aquilo como um mero acontecimento de domingo. QUALQUER coisa pode acontecer numa tarde de domingo já que geralmente NADA acontece.

"Lembrei!" gritou o anjo com um pequeno salto.

Olhou Rico nos olhos. Estava sério.

"É uma provação. Precisamos de uma prova de sua fé."

Meu Deus, pensou Rico, isso tudo já está começando a ficar ridículo. Tinha que parar com essa mania de rezar todos os dias antes de dormir.

"Amanhã sairão os números da loteria. Está acumulada, você sabe. Vimos você jogar um cartão. Bem, esse cartão será o único contemplado com o prêmio."

Mais essa!, pensou Rico. O anjo fez uma pausa dramática para então recomeçar.

"Mas" continuava didaticamente, "para levar essa bolada, o senhor terá que provar a sua fé. Antes do sorteio, a ser transmitido pela televisão, vá até o estacionamento da sua empresa e deprede o carro do seu chefe."

"Continue." falou Rico. Aquilo estava começando a ficar divertido.

"É só isso. Prove sua fé. Quebre o carro do seu chefe que a sorte sorrirá para você."

Rico pensou um pouquinho. Estava mal de grana.

"Não sei." disse. "Vamos ver. E se isso for um truque? E se eu estiver dormindo? Ou bêbado? Ou chapado? Não tenho certeza se posso acreditar em mim mesmo ultimamente."

O rosto do anjo assumiu uma expressão grave.

"Aí é que está. Não é a sua autoconfiança que está em jogo. É sua fé em Deus."

Dito isso, outro clarão e o anjo desapareceu.

Rico olhou as flores desbrochando na árvore perto da janela do seu apartamento. Notou uma nuvem despontando, bem ao longe, a oeste. Juntou a foto de uma garota do chão e foi ligar a televisão.

Amanhã seria segunda-feira.

No dia seguinte, Rico repetiu o ritual matutino. Ainda que a visita do anjo tivesse lhe deixado profundamente ressabiado, em nada alterou a sessão de yoga das sete da manhã, tampouco o café da manhã macrobiótico que se impunha para manter a forma. Vestiu um bom terno, sapatos novos, desceu à garagem e dirigiu oito quilômetros até o trabalho. Cumprimentou os seguranças, estacionou o carro ao lado da vaga do diretor da empresa, desceu e, de dentro do porta malas, tirou um pedaço de ferro que media pouco mais de um metro. Fechou o porta-malas, colocou o casaco do terno sobre o capô do próprio carro e, empunhando o ferro com as duas mãos, pôs-se a destruir o carro do chefe. Começou golpeando as portas. Um alarme ensurdecedor disparou. Depois, amassou o teto, quebrou os vidros, as sinaleiras e faróis e a traseira. Pouco restou do belo carro alemão último tipo quando os seguranças chegaram atraídos mais pelo som das pauladas do que pelo escandaloso alarme. Quando se dedicava a desfigurar o console computadorizado e a direção hidráulica regulável, Rico foi imobilizado e espancado pelos seguranças antes de ser detido e hospitalizado. A primeira cacetada atingiu suas costas e esmigalhou algumas costelas. A segunda pegou na parte posterior do crânio e deixou Rico insconsciente por três dias. Acordou no hospital.

"Oi."

Uma enfermeira sexagenária. A primeira visão de Rico após o incidente. Assim que abriu os olhos, tudo veio à lembrança. O anjo, a loteria, o carro, o espancamento.

"Você acordou!"

Ricou estava consciente, mas ainda não recuperara a fala. Apenas resmungava, sentindo dores por todo o corpo.

"Espere que eu vou chamar o médico."

O médico veio logo. Parou ao lado da cama examinando uma prancheta muito rapidamente, como se já conhecesse o conteúdo.

"Bem, senhor... Rico Morález... o senhor sofreu uma concussão na parte posterior do crânio, na base do crânio mais propriamente. O senhor se lembra do que fez?"

Rico assentiu com a cabeça. De leve, porque senão doía.

"Pois é. Tem um inquérito correndo. Bem, eu já liguei para sua família. Eles já devem estar a caminho."

Só então Rico começou a perceber o ambiente. Seu quarto era dotado de equipamentos modernos e um asseio atípicos dos estabelecimentos de saúde públicos que era obrigado a freqüentar devido à sua eterna falta de dinheiro.

O médico já estava saindo quando voltou sorrindo e com um caminhar mais descontraído.

"Tinha me esquecido! Na mesma manhã em que você foi internado, sua irmã achou um bilhete da loteria no seu apartamento. E estava premiado. Parabéns. Desculpe o trocadilho, mas você está rico."

Deu uma risadinha, girou sobre os calcanhares e saiu cantarolando baixinho, como se fosse ele o contemplado com o prêmio milionário. Assim que Rico ficou sozinho no quarto, um clarão cegou-o, como se todas as luzes ganhassem, repentinamente, potência redobrada. O anjo reaparecera. Dessa vez com uma garrafa de vodca na mão.

"Muito bem, muito bem... você se saiu muito bem desta."

Rico só olhava. Nem grunhia. O anjo bebeu um gole da vodca e secou os lábios delicados e rosados com a manga do roupão.

"É bom ver que você confiou em mim. Só que tivemos um problema..."

O anjo cruzou as pernas no ar e largou a garrafa de vodca sobre a mesa de cabeceira. Os olhos de Rico pareciam verdadeiros pontos de interrogação.

"Algo deu errado e a pancada que você levou atrás da cabeça foi muito forte. Não era para ter acontecido, tinha um dos nossos entre os vigias. Ele era responsável pela sua segurança."

O anjo assumiu uma expressão mais grave, segurando o queixo com uma das mãos.

"Eu realmente não entendo como isso pode ter acontecido. Eu não sei se o médico lhe disse mas é bem provável que você perca quase todos os movimentos do corpo."

Os olhos de Rico se arregalaram, entre o desespero e a incredulidade.

"Eu sei, eu sei, me desculpe, isso não costuma acontecer. Mas no momento eu não posso fazer nada."

Uma enfermeira entrou no quarto para retirar uma bandeja da mesa de cabeceira. Não viu o anjo e tampouco a garrafa de vodca. Pouco depois, saiu. O anjo foi em frente.

"Quero dizer, fugiu à minha alçada. Mas eu não vou lhe abandonar, não se preocupe, estou fazendo o possível... olha, eu nem sei o que dizer... eu vou voltar, não se preocupe, não se preocupe..."

Não disse mais nada. Rico queria sorrir ironicamente mas não conseguia. Por dentro, gargalhava sonoramente, uma gargalhada demoníaca que ecoava e assustava. Um pouco chocado com o que ouvia, o anjo catou a garrafa de vodca de volta e partiu da mesma forma que chegou: naquele clarão sem som que parecia abafar o mundo por um instante.

Sozinho, Rico imaginou se tudo aquilo não seria mais que um pesadelo, mas anjos não freqüentam pesadelos e cartões premiados de loteria muito menos.

Interrompendo os pensamentos de Rico, dessa vez apareceu, do nada, um ser soturno. Ele não ficou surpreso. Era uma figura tão conhecida quanto o anjo. E, por incrível que pareça, mais simpática. Talvez pela sinceridade que inspirava. Trajava uma longa capa preta com capuz. Tinha um rosto marmóreo, parcialmente escondido pelo capuz, e uma grande foice numa das mãos. Apesar da indumentária, algo sugeria ser uma criatura amável. Pelo menos nessas circunstâncias.

"Bom dia, Rico. Nós temos que conversar."