Minha filha e eu, o padeiro e as nozes

Miguel da Costa Franco

Dia dos pais. Reunião na creche. Fazer desenhos com a filhinha. Pintar com guache com a filhinha. Lambuzar com tinta, cera e cola um enorme pedaço de papel com a filhinha amada.

Sempre de olho na manga da camisa.

- Olha a calça do pai, meu bem! Não, não limpa a mãozinha na minha gravata, querida! Isso, fecha essa tampa. Cuidado! Que bonito que ficou! Não, o pincel no meu bolso, não, docinho!

Hora da bóia. Comer lanchinho com a turma da filhinha. Dividir mordidas com o coleguinha babão da filhinha. Tomar "toddynho" com a filhinha.

- Ih! Virou o suco. Não faz mal, querido. Toma outro, cuida prá não virar!

Escapar da lambuzeira intacto, nem sequer babando no joelho que a cadeirinha minúscula quase fez colar no queixo.

Por sorte tinha um padeiro.

Ele levou um bolo enorme de nozes. Assim me vi livre de comer aquela torta de verduras macrô que o papito do Tiago queria me empurrar. Ou o pastel graxento da mamãe gorda da Valentina. Coisa boa aquela torta!

Nozes. Adoro nozes.

Agora o parabéns. Viva os papais! Viva!

Agora os presentinhos. Ai, que amor! Uma cueca, que bom. Olha só: tem o pezinho dela bem na frente do saco. Tem que cuidar para não ser atropelado quando estiver vestindo, ah, ah, ah! Já pensou ser despido no pronto-socorro e estar vestindo uma cueca dessas...

- Agora vambora. Tiau, tiau, muito obrigado, vamos neguinha, vamos que a mamãe já está esperando.

Entrar no carro, botar a fofinha para dentro, isso querida, no banco de trás, e põe o cinto. Guardar a mochila, afivelar o cinto na barriguinha dela.

Arrancar o carro, dobrar a esquina, agora a outra, ih, trancou tudo. Maior engarrafamento. Arranca, pára. Arranca, pára. Pum. Arranca, pára. Pum. Outro pum. Arranca, pára.

- Que fedor! Que cheiro é esse, pai?

- O pai deu um pum, fofinha.

Arranca, pára. A barriga dá um nó, acho que foi a torta do padeiro, vai ver desovou uma das que já estavam meio passadas. Arranca, anda um pouco, pára. No carro ao lado, a mamãe do Tiago acena.

- Que saco esse engarrafamento, não é?

E eu soltando pum. Melhor fechar o vidro. Não aguento mais esse fedor! De repente, a barriga dá mais um nó. Era o mundo que vinha abaixo. Padeiro filho duma égua! Arranca, pára. Na próxima, eu entro na avenida. Quem sabe desço naquele posto, deve ter um banheiro, deixo o carro aqui no meio da rua e vou correndo, quem sabe chamo a mamãe do carro ao lado, fica um pouquinho aqui com ela que eu preciso cag... cag..., ai que dor nas tripas, acho que vai despencar tudo.

Pegar a camiseta da sacola e enfiar pelas calças adentro, tipo fralda, mas tem que ser rápido. Rio para a mamãe que está bem no carro ao lado e vou forrando a bunda com panos. Pontada, pontada dupla, pontada tripla, melhor levantar um pouco a bunda. Tão quietinha a minha fofinha, não fosse essa velha no carro ao lado.... Agulhadas, ferroadas, todas as nozes do mundo pedem passagem, ai meu deus, o rádio canta lá vem portela . E veio mesmo: me caguei todo. Mal deu tempo de erguer um pouco a bunda.

Fundilho cheio. Um pouco está escorrendo pela coxa. Que fedo! Minha fofinha está tão quietinha. Sacou que estou com problemas! Amor de criancinha. Arranca, anda, vira, dobra, nunca tinha dirigido de pé. Se me sento, já era o banco de veludo, nunca mais eu tiro esse bodum.

Faço o retorno por baixo do viaduto, ainda bem que o outro lado está mais livre.

- Que tá me olhando , ô meu, nunca viu alguém dirigir de pé?

Vamos devagarinho. Dobrar na Cabral, subir a lomba, dirigir de pé na subida é mais difícil, consigo passar sem sentar no banco. Então respiro.

- Tá tão quietinha, fofa, que fedorzão, né?

Nem respondeu, anestesiou.

Quase chegando. Só me falta estar na frente o vizinho novo. Entro direto na garagem. Valeu o investimento no portão eletrônico! Descer a lomba de pé é mais tranquilo. Já estou chegando. Vizinhos na frente, olhando a pintura nova da casa. !Batarde! Aceno para eles, vamos nos conhecer uma outra hora. E quem é o veado daquele fusca que embicou na minha garagem? Fico esperando, de pé, vizinhança toda ali pela volta, o fusquinha vem de ré, cai fora, ô merda!

Saiu. Me ergo um pouco mais do banco e faço a curva. Embico eu na garagem. Cadê o controle? Onde diabo eu enfiei o controle remoto? No cu não foi, que eu teria cagado. Merda, não achei o controle.

- Vamos descer aqui fofinha,o papai primeiro.

Boto o pé esquerdo no chão e giro rápido. Melhor se eu tivesse uma velha vemaguete, com a porta abrindo para o outro lado. Desci. Ninguém viu nada ainda. O guarda da rua vem para o meu lado, não quero nada contigo, seu Fernando.

- Desce fofinha, anda logo, te dou um chocolatinho lá dentro, vai até o portão, isso mesmo.

Agora eu. De costas. Padrão de dignidade. Disfarço olhando a copa da árvore, a SMAM precisava mesmo dar uma podada nela. Tomara que não sintam o cheiro! Chego no portão, coisa ridícula entrar de ré. Mas entro. Olho a caixa de correspondência só para disfarçar, por sorte está cheia. Vou andando de costas, devagarinho, olhando os folhetos de propaganda. Sinto a merda escorrendo pela perna. Tomara que a meia segure. Se chegar no sapato, já era. Abro a porta.

- Entra, querida.

Meu tom é determinado e ela nem pisca.

- Quero meu chocolate!

- Já dou. Respondo, ríspido, batendo a porta com gosto.

Ainda ninguém viu. Direto para o banheiro. Tirar o sapato antes que ensope. Reto para o banheiro com passinho de urubu malandro.

Abre uma porta atrás de mim. Mulher e filha mais velha aparecem.

- Que cheiro! - diz a patroa.

- Olha o pai, mãe, olha lá, ... ele tá todo cagado!

E estava mesmo, foda-se. Agora estou no banheiro. Lugar de merda é no banheiro. Tiro tudo. Tem merda nas bordas da camisa, na camiseta que usei de fralda, a calça está imprestável, uma mancha marrom da cintura até as coxas e, desde aí, filetes escorridos pela canela. A cueca foi para o lixo. E eu direto para o chuveiro.

- Alguém me tira essas roupas daqui, pelo amor de deus!

- Eu não!

- Eu também não!

E eu que acreditava em solidariedade. Tomo um banho, lavo as roupas e depois tomo outro banho.

- Pelo menos fechem a porta do carro prá mim! - grito, prontinho para me borrar de novo.