O Cadáver da Democracia

Jorge Furtado

"A democracia representativa é um cadáver

que à esquerda mantém de pé".

José Paulo Bisol,

em entrevista ao Não 57.

Largo Glênio Peres, três da tarde. Me aproximo de um membro do Povo Propriamente Dito, doravante denominado PPD. Eu, com um microfone na mão, seguido pela câmera, ligada. Ele, a caminho de um compromisso não muito urgente. Homem, branco, quarenta anos, gravata, casaco na mão, celular na cintura. Precisamos de alguns do tipo para uma enquete sobre desemprego. Já tem muito jovem e muita gente feia. Esse cara funciona para as donas de casa. O jogo é: assuste a classe média. E nós estamos perdendo.

- Boa tarde.

Ele vê que vai ser entrevistado, não parece gostar muito da idéia, pensa em desviar mas, como quase sempre acontece, teme ser gravado em situação constrangedora, fugindo da câmera. Para o PPD, televisão é sempre ao vivo. Ele pára.

- Nós estamos fazendo uma enquete sobre desemprego.

A primeira pergunta dele deveria ser "nós quem?". E a segunda, "por quê?" Mas o que ele diz é "sei".

- Sei.

- O senhor conhece alguma pessoa desempregada?

- Muitas. Eu mesmo.

- Há quanto tempo o senhor está desempregado?

- Quatro meses.

Chega. Mais pessoal que isso começa a virar drama, afugenta o público. Mudemos o rumo da conversa, buscando alguma coisa usável contra o Fernando Henrique.

- Na sua opinião, qual é o motivo do desemprego?

- Ah, é o Fernando Henrique. Vendeu tudo que tinha para vender, aumentou os juros. Tá a maior recessão. O culpado do desemprego é o Fernando Henrique. Assim, não dá. Tem que mudar.

Ótimo. Dá para deixar com uns 8 segundos. E o cara falou olhando para a câmera.

- Passou um cara atrás com uma bandeira do Britto.

- Perto?

- Deu pra ver direitinho.

- Saco. O senhor se importaria em repetir?

- Tudo bem. Para que que é?

- É para a campanha do PT.

- Tudo bem.

- Só o final. Tá gravando?

- Gravando.

- Na sua opinião, qual é o motivo do desemprego?

- É o Fernando Henrique. Vendeu o patrimônio público, as estatais, e manteve os juros muito elevados. O culpado do desemprego é o Fernando Henrique.

A outra foi melhor. Era bom aquilo do "assim não dá, tem que mudar". E "patrimônio público" é pior que "tudo que tinha para vender".

- Deu um problema aqui no áudio. Mais uma por favor.

- Tudo bem. Olhando para a câmera?

- Pode ser.

- Eu posso olhar para você no começo e dizer o final para a câmera.

- Ótimo. E o final da primeira foi melhor. O senhor disse "assim não dá, tem que mudar".

- Isso mesmo. E na segunda vez eu me atrapalhei na hora de falar "patrimônio público". Vou dizer como eu tinha dito na primeira, "vendeu tudo que tinha para vender".

- É melhor. Gravando? Na sua opinião, qual é o motivo do desemprego?

- O Fernando Henrique. Vendeu tudo que tinha para vender, aumentou os juros. A recessão tá enorme. O culpado do desemprego é o Fernando Henrique, não tenha dúvida. Assim, não dá. Tem que mudar.

- Ótimo.

- Quando é que passa?

- O dia exato eu não sei. O senhor tem que assinar uma autorização. É exigência da Justiça Eleitoral, dizendo que o senhor não é filiado a nenhum outro partido.

- É para o PT?

- É.

- Eu vou votar no PT. Esse Fernando Henrique é um veado desgraçado.

- Veado? O Fernando Henrique?

- Tudo veado. Ele, o Marco Maciel, ACM. Um tio meu trabalhou com o Marco Maciel em Santa Maria. É uma baita duma bicha.

- O Marco Maciel trabalhou em Santa Maria?

- Ele é de Santa Maria.

- O Marco Maciel é pernambucano.

- Quem é aquele de Santa Maria?

- Não sei... O Marchezan.

- O Marchezan é veado?

- Não. Quer dizer, não sei, acho que não. Mas ele é de Santa Maria.

- Santa Maria tem muito veado. Onde é que eu assino?

- Aqui.

- Tudo bem. Tenho que ir.

- Obrigado